Eu tenho medo dos cinco minutos.
Bisa Amélia
Doutor, a gente passa duas horas por dia vindo pro trabalho,
oito horas trabalhando e duas horas no caminho de casa. Sem chuva. Não é fácil.
Chego em casa e tem coisa para fazer. Se eu gosto do meu trabalho? Gosto sim. O
mercado é colorido, animado, tem vida. O senhor conhece a nossa loja? É bonita,
grande, mais limpa que a minha casa - e olha que minha patroa é preocupada com essas
coisas de limpeza. Sempre ralhando com os meninos. Arruma isso! Limpa essa sujeira! Tira a roupa do chão! Dorinha bota
ordem em tudo. O mercado? Logo na entrada é o meu setor, tudo organizado,
perfeitinho, banana, melancia, caqui, abacate, no capricho! Dá um trabalhão
danado empilhar as frutas, são caixas e mais caixas, haja braço. Quem vê pensa
que é fácil. Desgramera é quando tá
tudo acertado e a pilha desmonta e sai rolando por debaixo da bancada laranja-manga-limão-mexerica.
Acontece de vez em nunca. Podia não ter acontecido. Lasquera. A que horas eu entro? Começo cedo, às cinco, deixo cada
coisa no seu lugar, tudo brilhando antes da freguesia chegar - freguesia não, os clientes - o encarregado não deixa a
gente chamar as madame de freguesa,
diz que é mania de feirante. Quanto tempo? Quase 7 anos. Parece conta de
mentiroso, né doutor? Tenho muita história da loja, conquistei respeito, os
clientes gostam de mim, tenho bons colegas. A Maria dos frios, o Claudinei do
estoque, o seu Durval, o Ponto-e-vírgula da peixaria, as meninas do caixa e agora
tem o Estrangeiro! Ele fala tudo enrolado, diz que é brasileiro mas foi embora pro
Peru ainda menino de colo. Voltou agora, logo na idade de pegar exército, mas
deu sorte, com tatuagem não aceitaram o rapaz. Eu nunca soube que Peru era um
país. Só conhecia aqueles que a Maria dos frios fatia como ninguém. As pessoas
falam que a máquina corta tudo direitinho. Que nada! Precisa de braço, aquele
vai-e-vem, saber limpar as cascas sem cortar a carne fora, ajustar a lâmina para
fatiar do jeito que o cliente quer. Se a coisa está bem feita é porque alguém
fez, não foi a máquina. Claro que a gente erra também. O senhor tem um copo
d'água, por favor? Garganta seca, muito tempo falando. Obrigado. Bom, falei que
a nossa loja é uma belezura de tão limpa, mesmo assim tem coisa que a gente não
controla. Um azar danado, justo com a dona Lucia, freguesa antiga, chama a
gente pelo nome, cumprimenta, pergunta dos filhos. Só falta dar beijinho!
Desculpe, doutor, é que ela é bacana mesmo. Ela tem um jeito engraçado, fala
alto, é animada, sabe o que quer. Peixe, só compra com o Ponto-e-vírgula. O
senhor acredita que numa terça, dia de sacolão na loja, ela escorrega numa
folha de alface e se arrebenta toda? O joelho virou prum lado e o corpo pro outro. Uma folha de alface parou Dona Lucia
por 6 meses. Depois de um tempo ela voltou, cadeira de rodas, contando que
estava fazendo fisioterapia e que faltava pouco para andar. Manteve o sorriso,
continuou cumprimentando, chamando pelo nome, mas a loja tomou um processo. Aquilo
foi feio, sobrou pra todo mundo. Na
loja, até casamento terminou. Eu tava
organizando o corredor 5, bolachas, biscoitos, chocolate, quando a mulher mandou
um tapa, mas um tapão dos bons na cara do marido. Ele, jeito de sonso, solta um
"que é isso!?", ela com um pacote de mentirinha na mão,
grita que não aguentava mais, que o casadinho estava ao lado da mentirinha, que
aquilo era um sinal, que já tava
desconfiada fazia tempo e que viu como ele alisou as laranjas na hora de
escolher entre a seleta e a lima - e que ele não alisava ela daquele jeito há um
tempão. E que isso era um sinal. Sinal do que, doutor? Os dois largaram todas as
compras no carrinho. Ela aos prantos, ele dizendo que não era nada disso, que
ela estava enganada, desde quando biscoitinho era sinal de alguma coisa. Vai entender,
doutor, vai entender. Cada louco que a gente encontra pela vida. Quem sou eu pra
julgar, ainda mais na minha situação? Fui voando pro corredor 8, guardar os
potes de sorvete senão, além de ter que colocar tudo o que tinha no carrinho nas
prateleiras, a loja ia ter prejuízo. Isso não pode. A faca? Sempre carrego uma
por causa da degustação. Uma gentileza e também uma forma de vender o que está quase
passando do ponto. Os clientes compram com os olhos e com o estômago. Experimentou,
comprou. Se estiverem com fome, levam mais ainda. Como foi? Já disse, não sei
explicar, doutor. Me deu uns 5 minutos. Eu tinha acabado de montar a pilha.
Veio a madame, toda grossa, me olhando feio. Ela enfiou a mão por baixo de tudo
pra escolher uma cabeça de alho. UMA
cabeça de alho. Foi alho pra todo
lado. Tudo no chão. Uma sujeira, trabalho perdido. Eu já tinha sacudido no
ônibus, tomado chuva e cheguei atrasado. Perdi a cabeça. Meti a faca nela. Então
doutor, vai me defender?
set, 2012 foto: Sylvia Beatrix |