quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um conto qualquer

Fulana era uma boa pessoa.
Boa mãe, daquelas que corre na hora do almoço para buscar os filhos na escola (e de quebra, bater um papo com a professora).
Boa esposa acompanhava o marido a jantares com os amigos, colegas de trabalho, estava sempre com a depilação em dia, manicure perfeita, cabelos arrumados e perfumada. Até na cama, dava para o gasto.
Boa profissional, cumpridora de prazos, tinha idéias criativas, fazia planilhas excelentes e estava no mesmo emprego há alguns anos.
Tinha poucas amizades, considerava que a maioria das pessoas que conhecia eram apenas colegas. Amiga mesmo, somente Sicrana que conhecia desde a época do colégio. Com ela, conversava sobre tudo. Fulana foi madrinha de casamento da amiga, já Sicrana, era madrinha de um dos filhos de Fulana.
No prédio, a vizinhança não tinha do que reclamar – mesmo quando os filhos de Fulana se excediam na gritaria e brincadeiras na piscina. Estes sim eram considerados pela vizinhança mimados e mal educados.
É... no geral, Fulana era uma boa pessoa. No geral.

Quem discordava disto, era Elicleide.
Fruto de uma pulada de cerca de seu pai, Eli, que não conseguiu resistir aos encantos de sua mãe, Cleide. Completamente apaixonada e sem a menor condição de ter o pai de sua filha ao seu lado, Cleide resolveu unir os dois para sempre de qualquer maneira. Assim, decidiu o nome da filha: Elicleide. Desta maneira pelo menos, perpetuava a união que jamais aconteceria de fato.

Elicleide trabalhava na casa de Fulana (“Dona Fulana, Elicleide! Olha a intimidade!”) há dois anos, desde que sua prima Jacira voltou para Sergipe.
Quem precisa, faz cara de quem gosta – é o que sua mãe respondeu, quando Elicleide perguntou se deveria aceitar ou não o emprego. Jacira já havia contado algumas situações vivenciadas com Dona Fulana, nada agradáveis. Elicleide resolveu fazer cara de quem gostava e aceitou o emprego.

Como sempre, o serviço era completo. Limpar, cozinhar, cuidar das roupas e das crianças. Entrar cedo e sair quando fosse liberada – ser mensalista tem suas vantagens e desvantagens também, mas pelo menos, não precisava dormir no emprego.
 Quase sempre chega no horário, gosta de ser pontual, mas  quando chove ou motoristas e cobradores fazem greve, se atrasa um pouco. E isso é motivo suficiente para começar o falatório de Dona Fulana.

- O que é isso, Elicleide? Eu pago prá voce estar aqui às sete horas, são quase oito! Onde já se viu? É por isso que esse país não vai prá frente, essa gente não quer trabalhar, não se organiza, bota a culpa em tudo, mas responsabilidade que é bom, nem pensar... nem pensar!

Elicleide preferia se atrasar e ouvir tudo o que Dona Fulana tivesse para dizer, a fazer qualquer outra coisa errada. Atraso, não era descontado de seu salário, já o resto...
Lavar louça era um tormento. Tremia só de ver a pilha de louça. A taça de vinho que escorregou e quase cortou sua mão, foi descontada do salário. Nunca imaginou que um pedaço de vidro de cabo comprido, fosse tão caro. Trinta e cinco reais! Onde já se viu um absurdo desses? E com tanto copo de requeijão sendo jogado fora, é um desperdício. Pelo menos, Dona Fulana permitiu que o valor fosse parcelado.

Ao longo dos dois últimos anos, morria de medo de quase tudo: de lavar, passar, de fazer o seu serviço. Nem se importava com a falta de reconhecimento, mas os descontos no salário doíam demais. Ela não fazia de propósito, seguia todas as recomendações de Dona Fulana, mas às vezes não entendia bem o que era para fazer. E algumas vezes, o que fazia dava errado, como na última vez que pediram para que limpasse a mancha no sofá branco, e ela usou água sanitária. Diacho, como iria adivinhar que couro não pode ser limpo com cândida? Esse conserto ela ainda estava pagando. E tudo o que ouviu, ainda ecoava em sua cabeça. Pensou em desistir, conversou com a mãe em casa, chorou. E ouviu a frase de sempre: “Minha filha, quem precisa faz cara de quem gosta.” Resignou-se.

Sendo essa a vida, era essa vida que levava religiosamente, de segunda a sábado, só tendo folga aos domingos.
Além do trabalho, outro compromisso que Elicleide cumpria religiosamente, era ir até a lotérica, duas vezes por semana e fazer o seu jogo na Mega Sena.
Marcava sempre os mesmos números: 04 – 12 – 27 – 33 – 41 – 58, e antes de entregar o bilhete e efetuar o pagamento, rezava a mesma oração, baixinho: “Meu sinhô, meu sinhozinho / Luz de amor e de justiça / leve aqui o meu joguinho / e abençoa, por favor / essa sua devota / e os números que ela aposta”. E seguia para sua casa. Às quartas e sábados, ficava atenta a espera do resultado. Após o resultado, sempre pensava: “Na próxima, meu sinhozinho. Tenho fé, pois água mole em pedra dura, sempre bate até que fura. Amanhã, jogo outra vez!”

Se por um lado, a fé permanecia forte e inabalada, por outro, Elicleide não se deu conta de outro sentimento que crescia dentro de si. Como a vida era desse jeito mesmo, não tinha tempo para pensar nessas coisas. Seguia em frente. E despretensiosa,  quase sabendo que o tempo era seu maior amigo crescia a passos lentos, a raiva. 


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Moral. Moral?


Era uma bela peça de arte. Realmente, a primeira colocação foi merecida.

Na parte inferior do canto direito, era meu o nome que assinava a tela.
As cores, os traços e até mesmo a idéia, partiram de Marineide.
Mas as letras e a caligrafia que identificavam a autoria eram claras: DÉIA MENDONÇA. Com acento no E.

Incapaz de pintar e tendo que participar do concurso (nem me lembro o porque), lembrei da máxima proferida na aula de Literatura, quando o assunto era Machado de Assis, pela digníssima professora:

- Não tenham vergonha de pedir ajuda. 

Foi o que fiz, assim que me dei conta do desafio que se apresentava. Pintar um quadro para o tal concurso. (Quem foi que me inscreveu mesmo?)

Pedi.

Marineide aceitou.

O premio em dinheiro, é meu.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Bombas


Uma é doce... a outra, amarga
Envolta em papel delicado, traz prazer a cada bocado.
A outra, se aproxima aos poucos e desfecha golpe certeiro e mortal
Uma, me apraz... a outra, me desfaz.
Alguns segundos na boca, tortuosos minutos no ouvido
Uma eu devoro, a outra me consome.
Fruto de um desejo...
Fruto da desatenção...
Ambas tem seu tempo findo
Uma, meses na cintura...
A outra, anos no coração.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Amor barato



Pisava duro, determinada e cheia de raiva, do alto de suas sandálias prateadas, companheiras de guerra e de pagode. Basta!, pensou Marli. 
A caminho do bar, os últimos nove anos passaram - dia a dia - pela sua cabeça. Promessas, juras de amor, bichos de pelúcia, sexo suado com cheiro de cerveja, todos os momentos vividos com Negão foram novamente sentidos a caminho da desforra final.
Ela nem era do tipo que gostava de escândalos, tinha aprendido a ficar quieta e se controlar. Isto era fundamental quando se divide o homem com outra mulher. Mas tudo tem limite e, desta vez, ele ultrapassou. E muito.
Marli estava com Dr. Pedrosa, dentista do bairro, terminando de consertar uma ponte que havia caído da maneira mais estúpida que se poderia pensar. Na noite anterior, um dos clientes estúpidos, em um movimento estúpido, bem na hora do meia-nove, acerta uma joelhada na boca de Marli. Além do nocaute sofrido, uma ponte dentária perdida.
A recepção do consultório do Dr. Pedrosa, parece um salão de beleza, tão grande é a algazarra e falação de quem está esperando para ser atendido. Uma muvuca.
Foi ali, de boca aberta, cheia de parafernálias enfiadas na boca, que ela ouviu a história que mudaria tudo.
Reconheceu as vozes de Edileide e Márcia, conversando na recepção. O assunto era Negão e a imbecil da mulher dele, Nicéia.
Na verdade, mulher era força de expressão, pois eles não eram casados. Moravam juntos há catorze anos, mesma idade do descuido dos dois, Benedito.
Desde então, pelo "bem do menino", moram na mesma casa.
No bar do Joca - o local onde tudo é celebrado no bairro, de nascimento a enterro, de casamento a separação - semana sim, semana não, um dos dois aparece com olho roxo, arranhões pelo corpo, cabelos desgrenhados e cheirando a pinga. Outra briga. Para quem quiser ouvir, o discurso é sempre o mesmo - ou vai matar, ou vai morrer, que esta foi a última vez, isso nunca mais vai acontecer, que não se pode viver assim, blá blá blá.
Foi em um desses dias que Marli se apaixonou por Negão. Aquele homem, machucado por dentro e por fora, urrando feito animal as suas dores, mexeu com ela. Sem conseguir controlar seus impulsos, levantou-se, foi ao banheiro, molhou um chumaço de papel higienico e, na volta, foi limpar as feridas que Negão apresentava.
A partir deste momento, o resto é história...
Márcia, voz alta, parecendo uma gralha contava, a quem quisesse ouvir na recepção do consultório, que Negão e Nicéia estavam ficando noivos, no bar do Joca, com tudo o que tinham direito. Inclusive, anel de noivado.
Edileide, soltava exclamações a torto e à direito, como se realmente estivesse feliz ou se importando com os dois. O que ela queria mesmo, era sair logo do dentista e ir para o regabofe.
Marli, quase engoliu  o espelhinho que Dr. Pedrosa tinha em mãos.
Filho da puta!, gritou ao mesmo tempo que chutava a mesa de apoio do dentista, fazendo com que espéculos, pinças, bisturis e um sem nome de instrumentos voassem pelos ares. Isso não ia ficar assim.
Dr. Pedrosa, bem que tentou, mas foi inútil tentar domar a fera que neste momento nascia incontrolável. Marli saiu enfurecida.
Chegando ao bar, qualquer lembrança carinhosa que tivesse, sumiu.
A cena, por si só, era mais do que suficiente e, neste momento, lembrou-se da frase sempre repetida pela sua avó, que desgraça pouca é bobagem e sempre vem acompanhada.
Lá estava Nicéia... bebendo... sorrindo... rebolando e... com um anel no dedo direito. Era verdade, o fato estava sendo consumado.
Não bastasse a vergonha dos anos escondida, engolindo, amando em segredo mas sempre acreditando, agora havia um troféu escancarado em sua cara mostrando a sua derrota. E não era um troféu qualquer. Era um troféu de noivado.
Lá estava ele, um anel de um rosa tão intenso, como ela nunca vira na vida. Em meio àquele sacolejo todo, ele se destacava, como coisa de madame rica, chique, rosa, intenso. Era demais para ela. Ficou cega de ódio.
A partir daquele momento, Marli não se lembra mais com clareza o que aconteceu - mas a vizinhança se lembra dos detalhes até hoje.
Marli, voou para cima de Nicéia com uma fúria só vista nas lutas de vale tudo - não havia quem conseguisse desgrudar as unhas de uma cravadas no pescoço da outra.
Mesas, cadeiras, garrafas quebradas, "deixa disso" prá cá e prá lá, choro de criança, tudo misturado ao mesmo tempo, ninguém mais conseguia identificar quem batia e quem apanhava. Sobrou geral.
De repente, no meio da fuzarca toda, um grito lancinante, longo, doído se fez ouvir por todo o bar. Todos pararam. Meu anel sumiu!, gritou Niceia, ao mesmo tempo que caía de quatro no chão procurando desesperada pelo seu troféu.
Marli, escorraçada, é posta na rua, longe do bar, enxotada como um cão.
A sandália prata, sem um dos saltos...
A ponte, recém constituída, caiu de novo...
No rosto, os arranhões ensanguentados...
No corpo, hematomas por toda a parte...
No canto da boca, um sorriso...
O anel, agora era seu.

Niceia que ficasse com Negão.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Quem não tem cão, fica assim mesmo


Ivone, tudo bem?
Puxa, amiga... já faz um tempo que não mando notícias - estou com saudades!
Mesmo nesta era tecnológica, ainda gosto de uma cartinha... portanto, resolvi escrever.
Ontem, fui ao cinema com a Manoela... cinema sem voce é jogo duro... Bom, assistimos ao "Comer, Rezar, Amar", voce já viu? Aquele com a Julia Roberts e o gostoso do Barden... aff, amiga, me abanaaaa!!! Tirando esse "calorão", ainda não sei se gostei, amei ou detestei o filme! Pode? Acho que fiquei foi com raiva... foi uma ""bad trip" interna...
Fim do filme, falei prá Má: estou lascada!!! Fazer um roteiro MA-RA-VI-LHO-SO daqueles, prá se encontrar... quem pode? Só a Julia... que faz e ainda ganha uma for-tu-na prá isso. É, a autora do livro também... Confesso que fiquei com dor de cotovelo.
Nesta altura do campeonato e a maré do jeito que está, parei prá pensar. Comecei a fazer contas, começando por quanto eu já gastei na terapia com a Bete. Nem terminei, Ivone... nem terminei. Quando cheguei aos sete anos de terapia re-li-gi-o-sa-men-te frequentados, parei. Fui sentindo uma falta de ar, uma tontura. A Má ficou preocupada, me deu uns chacoalhos e falou prá eu acordar. OK, acordei... mas meu bolso, acho que não se recupera dessas contas. Já era para eu ter me encontrado há ANOS!! Anos!!
Como eu já estava na onda do filme, voltei prá casa, deixei esses numeros horrendos de lado e resolvi levantar meu astral. Fui olhar minhas fotos, ver algumas das viagens que fizemos juntas - isso tem valor, né? TEM QUE TER... 
Tinha uma foto bacana, em Caraíva, em frente da "mezzo cantina, mezzo casa" dos italianos que resolveram viver lá... Não era a Itália, mas o lugar era super lindo e a pasta... decente. Recordando esses momentos memoráveis, tive a certeza: não foi lá que me encontrei.
Fomos para Aparecida, lembra? A Basílica é linda, fizemos promessa, acendemos vela (como era cara!), assistimos missa, compramos santinho, fitinha, tudo! E do Jorge... não me livrei. Devo ter acendido vela para o santo errado. Voce e a Manoela, não podem reclamar. O que não fazia parte, na época, era a Má se apaixonar pela Renata... De qualquer maneira, querida, eu bem que poderia ter alimentado a alma, o espírito e todo o resto... mas não aconteceu.
Será que o problema é o tempo de duração da viagem? A Má acha que sim, ela disse que dá certo se a viagem for por um ano. Com tanto tempo assim, se a pessoa não se achar, tá perdida mesmo - aí, não tem jeito! E indo de um lado para o outro, quem vai conseguir te encontrar???
Mas um ano fora, amiga... como pode? O que faço com a luz, água, telefone, minha mãe, meu cachorro, o apê, emprego... ai!!! Socorro!!!
Ivone, a coisa tá séria para o meu lado... Se até aqui, "comer e rezar" foi uma lástima, o que dizer do "amar"!? O traste do Jorge, não ata nem desata - mas eu tenho fé, ô se tenho... Ele vai largar aquela mocréia antes do final deste ano (e não adianta, voce suspirar e pensar "de novo"... dessa vez vai acontecer, tô sentindo...) Ele está diferente, mais comprometido... Vai ver que é o meu santo lá de Aparecida, com um certo atraso de anos, trabalhando a meu favor...
Querida, vou parar por aqui... meu pulso tá doendo (de quem foi a idéia de escrever cartinha?) Além disso, enquanto não consigo fazer um circuito Julia Roberts, visitando Italia, India e Indonésia, nem um circuito Elisabeth Arden, trabalhando em Roma, Paris ou Nova Iorque, vou garantir o aluguel no famoso circuito Jeca Tatú (Barueri, Carapicuiba e Itapevi) que a vida de vendedora é isso mesmo... uma "aventura" atrás da outra!

Um grande beijo, saudades
Solange




quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sentimentos e percepções

Caminho de outono
As folhas caem...
A renovação se inicia.

Fim de verão,
As chuvas cessam
As aulas, começam...

Cai a chuva,
Molha o chão,
Alimenta o céu.

Rompe a luz da manhã
Com pássaros que voam
E a cantoria se instala

O galo canta
Ele acorda...
Café na cama.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Conversa alheia

- Pedrinho, voce quer pipoca?
- Não, vó...
- Quer água, querido?
- Não, vó...
- Mas voce acabou de falar que está com fome...
- Tô sim, vó...
- Então, porque está dizendo não prá tudo?
- É que voce perguntou se eu queria uma coisa, vó. Eu quis o brinquedo.

domingo, 7 de novembro de 2010

Minha saudade

Da gemada feita pelo meu pai para o café da manhã. Do passeio até a sorveteria Alasca, que meu padrinho proporcionava para mim, minha irmã e minha madrinha. Tomava sorvete até congelar. Fiquei com saudade deste frio. De subir na goiabeira de casa, cheia de medo dos bichinhos que moravam na árvore. A casa era deles e eu, a invasora. Da Catita, minha doce dálmata que um dia se foi sem eu entender a razão. Ficou a saudade. De cortar a cana, prá tentar assobiar e chupar ao mesmo tempo. Nunca consegui, mas valeu ter tentado. Saudades do casal de pinheiros plantados em frente à casa. Casal sim, pois um representava minha mãe e o outro meu pai. Saudades das quatro mãos, que marcavam o chão cimentado,  na entrada da oficina de "faz-tudo" do meu pai. Minha, da minha mãe, do meu pai e da minha irmã.
Oficina essa que, quando entrava um abajur, saía liquidificador que iluminava. Quando entrava ferro de passar, saía torradeira. E assim, o inventor inventava...
Saudade da minha vó, que sempre dizia: "Menina, que mania é essa de tudo ser seu? Minha mãe, meu pai, minha vó..."

Vó, hoje pode ser tudo meu?

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sexta feira

Sexta feira, fim do expediente, salão vazio. Dia puxado.
- Shiiiiiirley! Prepara o lavatório, menina! Vou prá terceirinha e última de hoje... Olha o capricho, hein nega. Na lavagem do almoço voce usou muito condicionador, filha. Desse jeito, fica bom não ta? Quero meus cabelos “super mara”, tá?
Resignada, Shirley se prepara para o ritual diário, imaginando como Paulinho se vira sem ela em casa. Será que pede prá mãe? Não, isso não... Ridículo imaginar que, uma bicha quarentona como ele, pede prá mãe lavar seus cabelos tres vezes por dia. Obsessão tem limite!
- Nossa, que dia, hein Shirley? Dona Laura saiu uma rainha... Um luxo! Só eu mesma prá dar jeito naquela cara hor-ro-ro-sa. –
Paulinho coloca a toalha em volta dos ombros, prepara-se para recostar a cabeça, mas antes...
– Shirley, ô Shiiiiiirley! Pega a última “Caras”, fazendo o favor. Tá fresquinha, acabou de chegar, to louca prá ver. É a que tem na capa Lu Gimenez e uns tres camelos. Um dos camelos é o marido dela, que deve carregar muita sacola de compra, isso sim... háháhá!! Trouxa. Repara a cara dele... tá rindo do que, criatura?
Bambi azedo, ela pensa. Não consegue ver alguém feliz que logo tem um comentário. Gente assim não tem espelho em casa, não se olha, pior... nem se enxerga. Xiii, começou a fungar... mal sinal... lá vem...
- Shiiiiiirley! Pega lá minha bolsinha de remédios. Tá na gaveta de achados e perdidos. Procura direito criatura, do lado do caixa. Ai, menina, como voce é atrapalhada! Não consegue encontrar nada mesmo – funga novamente – Essa rinite hoje tá que tá... Tomei meus remédios e nada, ainda me sinto malzinha... Será que é gripe? Não pode ser, já tomei vacina de gripe... créédo! E se for aquela gripe dos porcos? – faz o sinal da cruz – Essa eu ainda não tomei. Pode? Esse governo, criar regra e dizer quem pode ou não pode ser vacinado de graça? Nem te ligo, amanhã mesmo vou agendar a vacina numa clínica. Pago do meu. Mas acho bom também dar uma passadinha no Dr. Afonso, prá dar uma geral, tenho sentido umas dores... já faz um mês que não vou lá, passou da hora!
Com cinco gatos em casa e a mãe passando dos oitenta, impossível não ter rinite, alergia, coceiras, diz Shirley a si mesma observando o inicio de mais um ritual de Paulinho. Ri sozinha. Quantas vezes ele já leu e releu a bula desse remédio? É sempre a mesma coisa.
 - Olha isso, que tristeza, filha... O Roberto tá bem abatido aqui. Enterrar a mãe, não deve ser fácil - novo sinal da cruz – Deus me proteja! Antes disso acontecer comigo, a minha santa vai ter o seu salão... Ah, se vai! Escreve aí, Shirley – daqui há dois anos, monto o salão da minha Dona Clarinha. Só não vai ser em Santos, que prá lá não volto nem MOOOR-TA! Vai ser por aqui mesmo, perto da Praça Roosevelt. A-dooooo-ro o centrão.
Distraida, pensando como uma senhora de oitenta e dois anos cuidaria de um salão, Shirley repara no relógio da parede que marca 20,45h... hora de ligar para Dona Clarinha.
- Mãe, tudo bem com a senhora? Tô terminando, minha linda... Uns vinte minutos... Acho que dá sim... Ô mãe, só a senhora mesmo... brigado, viu? Beijo mãe, até daqui há pouco. Shirley, anda logo com isso filha, que ela já tá preparando a pipoca. Ô coisa boa... tem nada melhor que comer pipoca na panela, quentinha, feita com todo carinho pela minha santa mãezinha. Anda, menina, tá pensando no que?
Pensando em nada. Mecanicamente ela termina seu serviço agradecendo o fato de que depois de amanhã é domingo. Prá ela, bom mesmo é assistir o Silvio na tevê, comendo brigadeiro de colher.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Tuitando e brincando

A brincadeira do tweeter, me pegou!
Gostei da rapidez, do conteudo sintético (às vezes patético, é verdade) e, prá variar, do bate papo.
Por conta disso, resolvi brincar com as sílabas de @decicote.
O que dele sei, é que gosta de metáforas - não consegui usá-las aqui, fico em débito. Espero ter conseguido, no mínimo, criar um texto interessante. Assim como decicote é. Aqui vai:
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Decido contemplar textos.
Conecto-me à tela, desejando teu cívico perfil.
Teclo, concordo, debocho neste cibernético espaço.
Desligo, cinzenta, confusa e temerosa - não decifro o código de teu ciclo.
Teimoso, comenta a ciranda desrespeitosa e... pt, saudações.
Comedidos, circulam destemidos teus textos.
Desvenda a ciencia e contextualiza o tempo.
Decicote.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O ser humano, seu desenvolvimento e sua relação com o Zodíaco

Erra grandemente aquele que confunde o espírito ou a inteligencia com a Alma.
Não menos erram aqueles que confundem a ALMA com o CORPO.
Da união do espírito com a ALMA, nasce a razão.
Da união da ALMA com o corpo, nasce a paixão.
Desses tres elementos,
a Terra deu o corpo
a Lua deu a alma e,
O Sol deu o espírito,
Através dos quais o homem justo consciente de todas essas coisas, é, a uma só vez,
Nesta vida física um habitante da Terra, da Lua e do Sol.

Plutarco, 120 aC
-- 

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Caminhar

Trago em minha história
Nem sempre boa memória...
Dores, tristeza e temores
Nada que curem, os melhores doutores.
Rancor, amargura e solidão
Endurecem o meu coração.


Trago em mim a história
Que delineia minha trajetória...
Pedras, chuvas e vales
Fizeram parte de todos os males.


Em mim, trago uma história
Que pode ser notória,
Ter glória e contar vitória.


Pois em mim, trago também
O poder de olhar além,
De reconhecer que sou alguém
Que pode fazer o bem


E que consegue, acolher também
A sua própria memória.

(a todos os meus colegas do Grupo XII - Preparatório Formação Biográfica)

domingo, 24 de outubro de 2010

As voltas da vida

Avisada que essas coisas, mexe-vira, remexe-volta, acontecem - isso foi.
Crer, prá que?
Tocou a vida, virou-voltou, remexeu-mexeu e deu no que deu - a vida voltou e ela agradeceu - a quem jamais imaginou um dia agradecer.

domingo, 17 de outubro de 2010

Perfume de Guimarães

O coroa destro jogou a roupa sobre o abajur sem se dar conta do perigo que corria com seu gesto.
A fina lâmpada quente, após horas a fio iluminando o pequeno cômodo, não precisava de muito estímulo para partir-se em vários pedaços e, se o infortúnio estivesse espreitando o ambiente, com seu calor inflamar a pinga derramada sobre a mesa.
Se tivesse, por alguns instantes, pensado em seu ato, agiria de forma a concretizar a possibilidade. Para ele, perigo era a sensação de peso que ora possuía, dos anos acumulados, da coroa dentária mal feita, da roupa surrada que o envergonhava e o hediondo abajur, acusador, mostrando o exato tempo que havia passado... era um destro acabado.
As estúpidas topadas que seus incansáveis tortos pés deram ao longo da vida, só criaram calos e dores que hoje o imobilizam.
Em sua cabeça, apenas as palavras soltas e desconexas, acompanhadas dos objetos inexpressivos, lhe davam direção: roupa, coroa, perigo, abajur... e aquela que mais rancor lhe causava, destro!
A vida inteira lhe pareceu acontecer à esquerda...

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Oração

(sinal da cruz) Em nome do Shakespeare, do Neruda e do Chico Xavier...
Meu querido São Papaqueô, venho humildemente diante de suas páginas implorar sua compaixão. Estou sem criatividade, não consigo escrever uma linha sequer... deve ser praga do Sarney, pois assinei a lista a favor da saída dele da Academia Brasileira de Letras.
Não, meu santo... de maneira alguma assinei a lista para abrir uma oportunidade prá mim... quem sou eu!? Meu santo, eu te peço... ilumine minha mente com palavras belas, que quando se juntam com outras compõe um bom texto. Peço um bom texto, pois sou humilde, meu santo... não quero abusar de sua benevolencia. Mas aceitaria de bom grado uma inspiração tipo... Maria Claudia. Não quero que me tome por invejosa, meu santo... Deus me livre e guarde! Mas acho que o senhor tá sempre zelando por aquela boa alma... Ai, meu São Papaqueô, tende piedade de mim... Ontem mesmo passei diante de uma livraria e fui direto até a sessão de dicionários prá ver se acontecia algum milagre da tradução... É meu santo... da tradução, pois eu me enganei e estava diante de literatura estrangeira e como eu não queria perder a viagem, orei ali mesmo... Eu tinha que voltar pro trabalho, o senhor sabe como é isso. Ai, meu santo, que besteira... sabe nada, desde quando santo trabalha com horário! Ó meu senhor... feliz é a Marilei que prá onde olha sai texto... se não sai texto, sai foto... é a própria editora em forma de mulher... pobre de mim, meu santo... por isso estou aqui diante de ti... suplicando que derrames sobre mim tuas bençãos. Estendo, diante de ti minhas mãos, meu caderninho de anotações, o lápis e meu laptop...
Senhor, só peço que tenha piedade de mim e do meu saldo bancário e que essa criatividade toda não dependa de viagens internacionais pela Italia, India, Indonesia - ou qualquer outro local tão paradisíaco e perfeito para cenários cinematográficos - pois meu caixa tá baixo no momento...  Creio que um passeio por Cabreuva, Itu e Sorocaba já ajude neste quesito... 
(sinal da cruz) Em nome do Shakespeare, do Neruda e do Chico Xavier... amém.


sábado, 9 de outubro de 2010

Companhia

Apenas um lembrete, que esquecemos com muita frequencia: fazer companhia a si mesmo é o melhor remédio.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Observando

Conversa em um SPA.
Uma delas, com o livro "Magra e Poderosa" em mãos e jogando exclamações para todos os lados. "Nossa que porrada!" "Aqui tá me chamando de vaca e imbecil o tempo todo!"
A todos que passam, também acima do peso, recomenda: voce precisa comprar este livro! Só diz verdades!
Conclui: o leite de vaca é o mal de todos os males. Decide trocar pelo leite de soja.
Será que encontrou a solução definitiva?

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Sobre o amor e o tempo

Quando medito totalmente isolado
Sobre diversas coisas de meu passado,
Quando ergo castelos no ar
Vazios de medo e de pesar,
Adulando-me com doces devaneios,
Sinto que o tempo passa ligeiro.
E todas as minhas alegrias comparadas a esta são doidaria
Nada mais doce que a melancolia.
Quando desperto e totalmente isolado
E me lembro de todo o mal praticado,
Meus pensamentos então me tiranizam
E o medo e o pesar me infernizam.
Se me detenho ou me quedo no mesmo lugar,
Sinto que o tempo se move devagar.
The anatomy of Melancholy (A anatomia da melancolia, Robert Burton, 1621)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O vaso

Droga, meleca, porcaria...

Hoje eu não saio daqui. Vou ficar bem quietinho. Ainda bem que tá frio, assim parece que eu ainda estou dormindo. Se abrirem a porta, fecho os olhos. Se chamarem meu nome, finjo que não ouvi. To sentindo meu coração na barriga. To sentindo um frio na barriga. Nem sabia que a barriga sentia tanta coisa assim. Até parece que foi ela quem quebrou o vaso ontem. Vou cobrir a cabeça com o cobertor e enfiar a cara na parede – assim a mamãe não me vê. Vai pensar que já saí prá brincar. Mas e depois, quando eu voltar? Como vai ser? Me escondo! É isto, me escondo, ninguém me encontra e vão ficar tão preocupados que nem vão se lembrar do vaso. O vaso, ai, o vaso... Quanto tempo precisa prá alguém esquecer alguma coisa? Os cacos já foram descobertos? Acho que sim. Não, acho que não, se a mamãe já tivesse encontrado o vaso morto, teria entrado no quarto e me tirado da cama. A Gabi viu e vai contar prá ela. Intrometida. Se ela contar prá mamãe eu conto que ela não é mais BV. Acho que isso é pior do que quebrar o vaso da bisa. E se não for? To danado... Que vontade de levantar. Não vou. Deus me livre! Como vou contar? Não vou contar. Conto ou não conto? Melhor não, ela nem vai reparar... Vai sim, ela repara em tudo. A culpa não foi minha, mas ela vai dizer que foi. Ela sempre diz que eu sou o culpado. Tô ficando com fome, queria tomar café. E sair daqui? Melhor não... Droga, agora a barriga tá roncando... Que barriga agitada! Vou me ferrar por causa dela – fica aí, roncando, cheia de fome, eu me levanto, vou prá cozinha e dou de cara com a mamãe. Essa barriga não tá me ajudando! Pára, barriga... pára! Vou dormir, isso... dorme, Tiago, dorme... Não consigo. Minha perna já tá doendo de tanto ficar aqui encolhido. A barriga roncando de novo... ai que fome... Meu Yakultinho... acho que ainda tem um na geladeira. E se a Gabi tomou o último? Ela me paga! Ai que fome!!! Vou levantar, tá tudo quieto... A mamãe deve estar dormindo ainda. Isso, levanto, tomo meu café, volto prá cama e me escondo de novo debaixo das cobertas... Isso mesmo... vou bem quietinho, sem fazer barulho, pé ante pé, ninguém à vista, corredor livre, porta da cozinha logo à frente, vai dar certo...

- Tiagoooooooo!!!!!

Droga, meleca, porcaria. Acharam o vaso...

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Tempos de escola



Riobranquinos queridos.
Alguns perto, outros longe - mas às vezes sinto que ainda estamos na mesma sala. Talvez, esse seja um dos milagres da vida cibernética. Espero que curtam a pequena homenagem a todos nós - e que fiquemos com vontade de organizar o famoso happy hour!

Era uma vez uma mulher com saudade de ser menina. Ela queria voltar a brincar e ter colegas de classe. Sentia muita saudade dos seus tempos de escola. Não pensem vocês, que a saudade era dos professores de quimica, física, matemática, não, nada disso. O vazio era do pertencer à turma, dos colegas, das risadas, das broncas recebidas pelos professores – ou seja, das pessoas e das peraltices.

Como queria brincar, começou a pensar com o que iria se divertir. A vantagem agora era o poder de escolha. Sorriu para si mesma, queria brincar com palavras. Procurou uma casa, onde o saber imperava, os livros estavam por todas as partes e as letras... ah! as letras, poderiam ser agrupadas, cuidadas, mexidas e remexidas a seu bel prazer.

Um sonho começava a tomar forma.

Timidamente, no mês das águas que rolam, chegou à sua nova escola. Local aconchegante, azul da cor do céu. Sentou-se. Não precisou de muito tempo para ter a certeza de que os próximos meses seriam maravilhosos. Estava mais do que feliz.

À sua frente, ela, a professora. Gostou do tom da voz, sem conseguir definir se era grave, rouco ou meio agudo. Para ela, era suave. Deliciosamente suave, principalmente quando lia os textos a serem estudados. Fascinação.

Ao seu lado, professores sendo alunos, jornalistas libertando seus escritos, enólogos apaixonados, viajantes incansáveis, adolescentes criativos, de tudo um pouco. Daqui e de lá. Miscelânea. Melhor seria dizer, Babel mas no melhor da sua compreensão. Como o vinho, o tempo contribuiu para o entrosamento e amadurecimento do grupo. As brincadeiras começaram.

As letras combinadas formavam palavras que a cada semana alimentavam cada um de nós pela beleza de textos que produziam. Algazarra pura!

Porém como todo vinho, que depois de aberto e degustado chega ao seu fim, o tempo de brincar findou-se. O sabor, as sensações evocadas, os momentos vivenciados – esses ficaram. Diamantes lapidados e eternos.

E a menina, que naquelas aulas tomou o lugar da mulher, brincou, riu e se emocionou como há muito tempo não acontecia. Feliz, voltou a pertencer. E, para sua surpresa, agora também sente falta da professora.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Jetéme

Ela gostava do som...
Não tinha a menor idéia do que significava.
Queria saber mesmo, é se ficava bom com farinha.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Qual será o fim da historia?

Vou te contar uma historia...

Em algum canto, escondido na alma, repousava o Sonho. Preguiçoso, com pinta de acomodado mesmo. Não estava nem aí pra nada.


 
Um dia, sem mais nem menos, a Preguiça foi embora pois tinha muito menos o que fazer em outras praças - essa aqui estava começando a se agitar. Como lobo em pele de cordeiro - pelo lado avesso da historia da carochinha - assim que a Preguiça saiu, a Vontade apareceu com uma baita força.

Uma sucessão de fazeres e aprenderes, inofensivos na aparência, tiveram inicio.
Faz daqui, aprende lá, procura noutro canto, busca, pesquisa, encontra, conhece, e por aí vai. Cada passo, novidade, descobrimento ou luz nova, apontava em uma só direção: o reencontro com o Sonho. Favas contadas, deu-se o encontro.


 
No primeiro momento, como todo ver de novo, alegria, satisfação, tentativa de recuperar o tempo não vivido, botar o papo em dia. Como depois do um, sempre vem o dois, a empolgação inicial foi dando espaço para um visitante intrometido. Era o Medo.

Do tipo folgado, entrou, aboletou-se em poltrona confortável e olhava a todos de cima a baixo. Iria comandar a partir dali. Essa historia de reencontro, era papo de gente besta na opinião dele. O que era antes, permaneceria igualzinho agora - este era o seu mote. Queria mesmo, era chamar o cordeiro de volta...

Olha, a historia é longa... mas prá encurtar, que o tempo é pouco e todo mundo quer usar com propriedade, a Vontade bateu o pé e disse que de lá não sairia. Havia reencontrado o Sonho e tinha certeza que era prá sempre. O Medo, até que titubeou um pouco, diante de tanta firmeza. Combinaram o seguinte: ele permaneceria por ali, fazendo o papel dele. Se essa certeza toda da Vontade e do Sonho fosse prá valer, ele sairia aos poucos - mas nunca completamente.

Amigo, sinto dizer que esse causo não encontrou seu fim. Ainda continua, mas hoje está assim: Sonho, Vontade e Medo convivem de maneira quase harmoniosa. Digo quase, pois desde quando o Medo cumpre com sua promessa e fica quieto no canto? Se não fosse a Determinação ter aparecido nas redondezas, essa história já teria terminado, provavelmente do mesmo jeito que começou.


 
Quando eu souber qual foi o desfecho, volto aqui e te conto.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Quando os olhos se encontraram com as mãos

Eram pequenas e inconstantes.

Mexiam-se de uma maneira estranha, nem tremendo, nem nervosas, existindo apenas. Frágeis e enrugadas, cobertas por uma estranha camada branca, escamando levemente e buscando não se sabe bem o que, exibiam a potencialidade da vida.

Nascia ali, a filha.

Na posição em que ela se encontrava e de um corpo que acabara de sair do seu, as mãos foram as únicas coisas que ela viu. Um lampejo de boca miúda, de carmim intenso também passou na frente de seus olhos. Mas foi breve, muito breve... somente as pequenas mãos permaneceram por perto, alguns instantes a mais. Melhor assim, pensou ela, antes sofrer de saudades somente das mãos, do que já sentir a dor de ainda não ter o todo. Como se, por si só tivessem vida própria, as pequeninas se foram e, pacientemente, ela esperou pelo reencontro.

De todos os sentidos, a visão e a audição, foram as grandes privilegiadas. Uma, pela beleza da dança protagonizada pelas pequeninas mãos diante dos olhos e a outra pela força do choro que anunciou a certeza da vida. Entre o primeiro e o segundo “estar junto”, passaram-se horas construídas com segundos que estavam amarrados a pesos de chumbo. Ela não conseguia dormir, só pensava nos movimentos incertos que presenciara e que seus olhos tiveram a sorte de usufruir.

Felizmente, o tempo cumpriu com sua sina e passou, trazendo o reencontro. De todos os pensamentos que teve durante esta longa espera, nenhum deles – nem remotamente – aproximou-se do que na verdade aconteceu. Eram aproximadamente seis horas da manhã, quando a enfermeira entrou no quarto com o presente dos deuses em seus braços. Os olhos queriam pregar uma peça, pois rapidamente embaçaram a visão. Desta vez, nada iria impedir que o encontro fosse perfeito, muito menos as lágrimas.

Delicadamente, a vida foi colocada em seu colo. No mesmo instante, as mãos foram reconhecidas, assim como o carmim da boca pequenina e seu formato de coração. Com carinho, recebeu auxilio para desabotoar o pijama. Amparando a cabeça da felicidade em vida e assim, apresentou à boca o seio.

Nascia ali, a mãe.



domingo, 19 de setembro de 2010

Um pouquinho todo dia

Parece conselho de vó... De repente, é mesmo Seja lá o que voce quer, basta um pouquinho todo dia. Se voce ama, faça um carinho, todo dia... Se voce deseja, feche os olhos e sonhe, um pouquinho todo dia... Se a balança parece ser do contra, caminhe um pouquinho todo dia... Se é da saúde que voce quer cuidar, coma uma maça todo dia... Se é dor que voce carrega, perdoe um pouquinho a cada dia...

Primos

De maneira geral, sempre rola uma piada relacionada a este grau de parentesco. Do tipo tosco, sem graça e vulgar. Porém existe, em muitos casos, a cumplicidade. De que tipo? Explico. Aquela que, quando voce volta de um lugar longe e chega no lugar de onde partiu, o primo serve de guia, de referencia. É aquele que te deu a mão e voce reconheceu. Te disse, "vem aqui" e voce foi pois confiava no caminho que era apresentado. As palavras, não eram muitas, mas a segurança era total. A idade, era pouca. O carinho, era imenso. E com isso, voce entendeu onde estava.

domingo, 5 de setembro de 2010

Nem pior, nem melhor.

Eram cinco. Estavam praticamente todas sobre a mesma pedra à beira da praia. Os comentários dos adultos ao redor, giravam em torno da natureza e como esta reivindicava seu espaço de direito. “Na minha época, a praia ia até aquela escada... está vendo, lá longe? Foi praticamente engolida pela maré.” “No verão passado, eu já tinha que tomar minha caipirinha no calçadão, não havia espaço na areia, um horror!” “Dotô, num tem mais espaço... deve di sê Deus brabo cum as coisa que nóis faiz. Vô ponhá sua cadeira aqui prá mó de servir u sinhô e a Dona Patricia no capricho!” Alheias a esses comentários e tantos outros, as cinco crianças brincavam com a sensação do medo. As ondas vinham... as crianças pulavam nas pedras, seu porto seguro e gritavam... gargalhavam... som estridente, reconhecidamente infantil e chato. Calem-se, vociferei baixinho. Que alegria irritante. No ir e vir das ondas, meus pensamentos acompanhavam este movimento. Iam mal humorados, voltavam emputecidos. Como pode? De onde vem tanta leveza? Deve ser a idade... Idade esta que não se preocupa com qual é o dia da semana. Muito menos com o horário, temperatura, período de eleição, futuro... O que importa é aqui, este momento, sobre as pedras e as ondas que se aproximam. “Vamos fugir prá elas não nos pegarem!” Grito estúpido, de uma infância que me incomoda. Será que elas não percebem que independente de seus gritos histéricos, as ondas não irão parar com este vai e vem? Elas não percebem que com o passar dos dias, irão envelhecer, desistirão de subir nas pedras para sentir segurança, mudarão seu tom de voz e gritos – nem pensar! Engolirão, cada um de seus sons e, acima de tudo, terão a consciência de que os movimentos das ondas manterá o seu ritmo, mudando apenas de acordo com a lua? Oh, doce ignorância... Meu ímpeto era contar a cada uma delas o que iria acontecer. Mostrar os sinais em meu rosto de como o tempo passa, que isto é incontrolável e que as ondas não importam mais. Que podem gritar o quanto quiserem, ninguém vai ouvir. Muito menos se importar. Dia da semana, mês e ano são apenas medidas entre o nascimento e a morte. Passam, um após o outro, numa sequencia tediosa, longa e desinteressante. Em algum lugar do passado, não me lembro onde, eu também subi em uma pedra. Acho que aquilo se chamava vida. Hoje, é apenas mais um dia da semana.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Só dói quando ri

Sempre sabemos como surgem, mesmo quando queremos esquecer. Visivel ou não, contam historias, trazem memorias. Uma delas, aconteceu de maneira muito bonitinha. Do alto do beliche, o menino resgatou as historias que ouviu, os quadrinhos que leu e o filme que assistiu. Resolveu voar. Preparou-se todo, não seria um voo como o do Super Homem. Seria um voo de Homem Aranha! Esticou os braços, apertou com o dedo indicador o próprio pulso para liberar a teia, mirou para o além e foi... para o chão! De cara, a seco, não sem antes bater o lábio superior naquele que, antes prédio, agora era apenas o outro beliche. Mas ele voou... entre a projeção do pulo e o corte na boca, ele esteve no ar. Rápido, rapidíssimo, milésimos de segundo... ele esteve no ar! A boca, até hoje mostra o feito. Dois pontos, nenhum dente perdido e a certeza de ter voado. Orgulho. Dessa cicatriz aparente, ainda hoje, quando ela já não tem mais o mesmo tamanho de antes, sente prazer em contar o que aconteceu. Ele cresceu, ela encolheu. E as invisíveis, o que fazer com elas? Do mesmo jeito que a cicatriz Homem Aranha, as invisíveis tem sua própria historia e nome. Difícil orgulhar-se delas ou contar com o tempo para que diminuam. Dormem, fingem-se mortas mas tem vida própria. Mascaradas nas tarefas do dia a dia, basta um sopro, uma letra, uma música, uma foto, um link ou qualquer outro despertador de memória para que, como uma fenix, ressurjam das cinzas. Neste momento, o menino homem, passa a mão sobre os lábios. Sente a rugosidade leve da marca de infancia e suspira. Quem dera, todas fossem como esta...

domingo, 22 de agosto de 2010

Homenagem a Dona Lygia, a Alfacinha

Foi um dia de dor. Muita. Depois de noventa e oito anos, um marido, tres filhos, seis netos e nove bisnetos; de ter enterrado o marido e o filho do meio, ela resolveu ir também. O corpo já não respondia à sua vivacidade. Os olhos, mantinham os azuis claríssimos, belo contraste para os cabelos brancos que sempre chamavam a atenção. Quantas foram as pessoas que ao verem o algodão que decorava aquela cabeça, cerimonia totalmente esquecida e guardada, acariciavam a cabeleira e exclamavam "que coisa mais linda!" Assim era... linda. Mas como tudo nessa vida, um dia se vai... ela foi. Carnaval, aniversário do filho enterrado, talvez quisesse relembrar os momentos passados com aquele seu menino folião - ao som de "Bandeira Branca", foi matar as suas saudades. Esta introdução é apenas para apresentar ao leitor, bem superficialmente, Lygia, minha avó. O que realmente quero deixar aqui, é a sua oração predileta, que no dia de sua partida, coube a mim ler, para todos os presentes. "Deus nosso pai, que sois todo poder e bondade, Dai a força àqueles que passam pela provação. Dai luz àquele que procura a verdade. Ponde no coração do homem a compaixão e a caridade. Deus... Dai ao viajador a estrela guia, Ao aflito, a consolação Ao doente, o repouso. Pai... Dai ao culpado, o arrependimento Ao espirito, a verdade À criança, o guia Ao órfão, o pai. Senhor... Que a Vossa bondade se estenda sobre tudo que criaste Piedade Senhor, para aqueles que não Vos conhecem, Esperança para aqueles que sofrem Que a Vossa bondade permita aos espíritos consoladores, Derramarem por toda a parte a Paz, a Esperança, e a Fé. Deus... Um raio, uma faisca do Vosso amor pode abrasar a Terra. Deixai-nos beber nas fontes dessa bondade fecunda e infinita e todas as lágrimas secarão, Todas as dores acalmarão, Um só coração, um só pensamento subirá até vós com um grito de reconhecimento e de amor. Como Moisés sobre a montanha, nós Vos esperamos com os braços abertos. Ó beleza! Ó perfeição! E queremos de alguma sorte merecer a Vossa misericórdia. Deus... Dai-nos a força de ajudar o progresso a fim de subirmos até Vós. Dai-nos caridade pura. Dai-nos fé e a razão. Dai-nos a simplicidade que fará das nossas almas o espelho onde se refletirá a Vossa imagem. Caritas."

domingo, 1 de agosto de 2010

O presente

Nem real era. Pedra, papel, metal precioso ou tecido - nenhum destes materiais se aplicavam a ele. Nem líquido, nem gasoso. Muito menos sólido. Reais, dólares ou euros foram desnecessários. Fato impensável em uma época como a de hoje onde "vale quanto custa" parece ser a regra. Custo zero. O material utilizado foi a criatividade, aliada à emoção e a um rico acervo. Chegou aos poucos, em etapas, atraves de um email. Texto explicativo, ligeiramente jocoso, mas já antecipava possiveis consequencias. Uma lágrima aqui e outra ali poderiam aparecer. Na mensagem, um link - o caminho virtual dos tempos de hoje - que nos levam a passeios impressionantes. Por este caminho, imagens de ontem e de hoje foram sendo descortinadas. Uma a uma. Clique após clique. E lá estava ela, a Vida. Nascimentos, comemorações, férias, situações cotidianas e até a morte estavam lá representados. Alguns se foram, levados por Deus, outros se foram por um link diferente. Duzentos e oitenta cliques. Vinte anos de historia. Uma familia. Uma vida. Várias lágrimas.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Se eu não entendo, pobre de voce...

Rapazes, venho aqui prestar minha solidariedade. Tres letras. Várias interpretações. Um significado. To Pronta pra Matar.Também Posso Morrer.TPM. Tanto faz, mas entenderam meu ponto de vista, certo? Geralmente conhecido como o período em que todo macho inteligente (e que goste da vida) se mantém afastado da femea. Qualquer femea. A sua ou a do outro. QUALQUER. Pode ser Angelina, Angelica ou Gisele. Ou voce acha que Brad, Luciano e Tom, não se arranham mensalmente? Ledo engano. O mais interessante é que, ao mesmo tempo que aparece esse gás todo, na linha "matar ou morrer" - a bateria acaba! Sério, acaba mesmo. Sei que voce não está acreditando, principalmente quando o surto de ira descontrolado surge, por causa da tampa da privada. As pernas doloridas e pesadas - sem ter passado pelo esforço da musculação no dia anterior - a sensação de que vinte e quatro horas equivalem a anos, a tentativa de dormir de barriga, gerando noites insones... Fim da bateria, fim da linha, ó dor, ó vida... E a fome? Caraca, de onde vem tanta? Tá bom, tá bom, larica pode até ser parecido, mas a diferença é que diverte, amolece e voce dorme. Além de ter companhia. Essa fome não... ela te persegue, tem foco específico - doces, chocolates e similares. De qualidade, claro, que até neste momento é importante manter a classe. Ferreiro Rocher devorado, minutos de satisfação e regozijo para logo depois... buáááá!!! Incontrolável, veloz, profundo ele vem sem a menor cerimonia. E voce chora por tudo: pelo emprego, pelo marido, pelos filhos, no comercial de manteiga, durante o Jornal Nacional, quando o telefone toca... e por aí vai. Chá, remédio, faltar ao trabalho, virar para o lado - nada dá jeito. Até o dia que ela vem. Bom, não exatamente no dia, no dia seguinte é certeza... Pássaros começam a cantar e, impressionante, voce repara que seu jardim está muito florido (deve ter sido o adubo organico que surtiu efeito em menos de vinte e quatro horas) Seus filhos são maravilhosos. Sua empregada, uma fofa. Seu marido... ah! Perfeito, um Adonis. E seu trabalho... nada melhor para manter a cabeça ocupada e sentir-se produtiva. Vida, plena e toda sua. Liberdade! ... Provisória, o alvará será suspenso em menos de 28 dias. Se eu não entendo, pobre de voce...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Metamorfose

Kafka escreveu. Raul cantou. A borboleta viveu. Eu, neguei. E foi inútil.

domingo, 4 de julho de 2010

Qual é a música?

Acordou de mau humor. Sem explicação. Tem gente que não acredita que alguém, só de abrir os olhos esteja de mau humor. Vou tentar explicar em poucas letras, sete para ser exata: D O M I N G O. Agora ficou claro? Mas ela não era daquelas que se entregava facilmente. Primeira alternativa, a TV. Pouco interessava o filme. Rotina é assim mesmo, mas a batalha não seria fácil, estava determinada a mudar esta rota de colisão. Filme infantil, Fábrica de Brinquedos ou algo parecido, com uma frase que logo despertou sua atenção. “A sua vida é um acontecimento. Certifique-se de estar à altura dela.” Era só o que faltava! Não bastava ser domingo e ainda recebia lição de moral da televisão. Resolveu levantar-se. Procedimentos higiênicos básicos, café da manhã, dá uma geral nos emails (os importantes ficarão para mais tarde), resolve ler alguns dos livros acumulados no criado mudo. A escolhida foi Clarice, A Descoberta do Mundo. Segundo passo para reverter o improvável. Percorreu a defesa de palavrões, a incredulidade diante do programa do Chacrinha, um dia de cólera (certamente Clarice escrevera aquilo em um domingo) e a possibilidade do SIM. Era demais, até Clarice resolveu dar lições de moral, possibilidades de vida e coisas do gênero. Quase revoltada, saiu para caminhar. Ipod em punho, mal humor na alma, passos lentos. Se a vida interna ia se virar contra ela, que pelo menos viesse acompanhada de uma trilha sonora decente. O que acontecia internamente, não precisava ser reforçado pelo exterior. Titãs na cabeça da dinossaura. O grupo começa cantando a fome, consolam Marvin, soltam os cachorros e outros bichos e confiam que o acaso os proteja. A alma começa a se expandir. Lentamente, a dinossaura vai se transformando. Remédio bom, pensa ela. Quero mais. A cada artista, uma letra, um sentido e um passo. Na clareira do parque, momento para uma pausa, senta-se. O que ouve não importa mais, pois o resultado começa a ser sentido por todo seu corpo. Os pés, antes militarmente ordenados, entram em completa revolução. A cabeça movimenta-se aleatoriamente, como se o vento a comandasse... Ela dança. Vencedora, volta para casa como se tudo o que precisasse saber na vida, tivesse sido revelado neste momento. O domingo existe, para que a gente dance. Seja lá qual for a música que se apresente, pois na segunda, começa outro baile. aqui, a musica é aquela que voce imaginar...

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Exercício de pensar

Entrou na sala, procurou um lugar que lhe parecesse confortável e discreto. Sentou-se. Poltrona azul escuro, daquelas com braços gordos e acolchoados, sem saber ao certo qual era o estilo, mas reconhecia que havia uma parecida na casa de sua avó. Combinava, e muito bem, com o restante da sala - vários tons de azul, diferentes matizes e texturas, bem como formatos e tamanhos. Gostou. Começou a observar os demais participantes, cada um em seu lugar, todos sentados olhando para a mesma direção. ELA. ELA, estava em pé, de frente para todos, com um canetão branco na mãe esquerda e rabiscava algumas palavras, que formavam alguns conceitos na tela branca. A voz, simples e cativante, ia descrevendo características literárias, teorias, histórias e, aqui vem o que importa, apresentando personagens até então desconhecidos. Não para ELA, mas para eles. Encantou. Nomes famosos, lidos, filmados, cantados e declamados. Apresentados de tantas maneiras que a reação não poderia ter sido outra. Despertaram. A partir deste momento - e no conjunto de tantos outros que se apresentaram naqueles longos e deliciosos meses - o inevitável aconteceu. Criaram.

domingo, 27 de junho de 2010

Apenas tres letras

Tanto para formar a palavra, quanto no alfabeto, elas seguem a mesma ordem. D, O, R. Cismam em se juntar, quando voce menos espera. Muitas vezes, voce mesmo procurou ordená-las. Finge que não sabe o que fez, mas as letrinhas estão lá, para mostrar a consequencia de um ato ou de um fato. Nesses casos, além de paciencia, quatro letrinhas em ordem, também podem ser o caminho. A, M, O, R.

sábado, 26 de junho de 2010

Confraternização

Estar junto é um dos maiores prazeres que tenho. Se é com voce, nem consigo medir...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saudade

Tãntãntãn. Seco, rápido e sem espaços. Nunca foi muito religioso, não ia à missa, evitava enterros. Batizado, foi a um só. Em casamentos gostava da festa, de encontrar os amigos, tomar whisky sem gelo e temperado com água bem gelada, por horas a fio, mantendo o mesmo copo. Quando a água esquentava, pedia outra. E claro, mais uma dose. Por causa disto, no início causava estranheza o tãntãntãn noturno, diário, preciso, metódico e infalível produzido logo após murmurar a oração. Infalível sim, pois mesmo depois de uma festa de casamento o som era produzido. Ou ainda, quando chegava tarde da noite, após um jantar de trabalho ou happy hour com os amigos, como um autômato, sentava-se na beirada da cama, murmurava (mais parecia um grunhido), fazia o sinal da cruz, deitava, puxava as cobertas sobre o corpo fechava a mão esquerda e com o osso do dedo médio batia na cabeceira de madeira da cama de casal. Tãntãntãn. Seco, rápido e sem espaços. - Ninguém agüenta esse clima! Olha eu aqui, de novo, me descascando como uma cebola. Casaco, malha, cachecol, moletom, segunda pele... Eu mereço! Por instantes, foi despertada com a ladainha de sempre. Até sorriu. Silvana, sua colega de trabalho, sempre tinha alguma coisa para reclamar. No verão, excesso de calor. No inverno, excesso de frio. Primavera, outono... Carolina voltou os olhos para o computador e fingiu concentração. A proposta precisava ser terminada ainda hoje, na verdade, deveria ter sido terminada ontem. Mas ontem, estava tão longe que nem sabia quando era. Lembrou-se da foto. A festa a fantasia, o chapéu de papa, a batina. Sorriu, adorava a lembrança que a foto evocava. Riu de novo, pois achou engraçado lembrar-se de uma foto que a fazia lembrar-se de outra coisa. Devaneios, doces e totalmente inapropriados para a ocasião. Precisava se concentrar na proposta, mas seus pensamentos não estavam colaborando. - Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o ultimo instante seu direito de dizê-la. Voltaire, ele sempre citava Voltaire. Essa frase especificamente, que gostava de praticar com os outros, mas não em casa. Ai se alguém discordasse dele! Com os amigos, justiça, liberdade de expressão e todas aquelas baboseiras masculinas. Todas passíveis de compreensão e perdão hoje. Deveria tê-las perdoado ontem. Carolina estava longe novamente, com seus pensamentos na direção oposta à do computador em sua frente. Pausa para o café. A proposta vai ter que esperar um pouco mais, sua mente está indomável, com fome de passado. - ... e sabe o que ele me disse? “Quando uma pessoa se casa, a vaga de namorado fica em aberto”. Voces acreditam!? Quase caí de costas!!! Que saia justa, logo comigo! Carolina achou graça do comentário. Impressionante como tem cara de pau no mercado, mas com cantadas engraçadas. Podia ser brega, mas tinha a sua graça. Por um instante desejou que tivesse acontecido com ela esta situação. A colega se divertia com o que lhe acontecera e entretinha a pequena platéia da hora do break. “Se fosse comigo, o que eu faria?”, pensou Carolina. Terminou seu café, voltou para sua proposta. Concentração zero. Antes de recomeçar com a fatídica tarefa, deu uma olhada na caixa de entrada dos emails, abriu alguns e deixou todos sem resposta. Não sabia o que responder. - Tinha uma música, meio anos 90, que terminava com voyage, voyage. Carol, voce se lembra qual é? Claro que se lembrava e ele sabia disto. Ela parecia o “qual é a musica?”, acertando a maioria das respostas. Deu a dica para que ele pudesse fazer a busca na internet e depois fazer o download. Na verdade, baixar. Sempre achou isso feio – baixar – parecia coisa de terreiro, mas é assim que todo mundo se refere a este processo: baixar arquivo, baixar filme, baixar isso, baixar aquilo... Assim eles seguiam, ela se lembrava da música e ele fazia a trilha sonora. Desistiu da proposta. Quem esperou um dia, espera dois. Despediu-se de todos e, mesmo sem precisar, inventou uma desculpa qualquer para sair mais cedo – pelo menos, não iria enfrentar o transito infernal das 6 da tarde. E poderia alimentar a sua mente sem sentimento de culpa. Chegou em casa, chaves no pote, bolsa na cadeira da porta de entrada. Foi para a cozinha, abriu a geladeira, tirou o pote com o resto do almoço e ligou a TV. Assim, de pé, televisão ligada, comida fria e colher na mão, engoliu o macarrão com molho. Quinze minutos depois, joga tudo na pia, desliga a TV, apaga a luz. Volta, esqueceu de dar comida ao cachorro. Sobe os quinze degraus, entra no quarto, tira os sapatos. Carolina senta na beirada da cama, murmura uma oração, faz o sinal da cruz, deita, puxa as cobertas sobre o corpo fecha a mão esquerda e com o osso do dedo médio bate na cabeceira de madeira da cama de casal. Tãntãntãn. Seco, rápido e sem espaços, como suas lágrimas.
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