terça-feira, 20 de março de 2012

Perdão uma vírgula

É o sistema.
Foi assim com meu pai e antes dele com meu avô.
Nasci na zona sul, viajei pelo mundo antes de aprender a falar, diplomatas foram meus colegas de classe, domino o inglês e o politiquês perfeitamente. Aprendi cedo.
Aos treze já dirigia uma cinquentinha vermelha e linda, levando na garupa uma despeitosa amiga. Percorri todas as alamedas do condomínio em Vinhedo, primeiro com a moto e depois com o carro. Orgulhoso, papai exibia-se aos seus ardilosos amigos entregando a mim a responsabilidade de ir ao mercadinho com seu carro. Com um assobio e um arremesso, as chaves estavam nas minhas mãos.

É o sistema.
Foi assim com meu pai e antes dele com meu avô.
Nasci num bairro de merda, vivendo na merda e sem educação. Aprendi a falar do jeito que dava, comecei a ler aos treze e até hoje não escrevo bem. Ruim nas letras, boa nas contas. No externato municipal, minhas colegas tinham barriga e os moleques um passado na Febem. Desde logo entendi que os números não aceitam desaforo. Comecei a trabalhar com a benção de Mãinha que jurava que eu tinha nascido iluminada. Acreditei. Consegui comprar o primeiro carro da familia. Painho, ficou danado de tanto orgulho.

Verão tem que ser na praia.
Areia, sol, mar... sem horário para levantar, celular com sinal insuficiente,  convidados escolhidos a dedo e espaço para negócios. Caseiro, babá, faxineira, cozinheira e quem mais estiver para nos servir e cuidar dos meninos. Sou filha de Deus, mereço umas férias.
Quatro suítes, edícula para as crianças com três beliches, de frente para o mar, um sossego! PS3, piscina, mesa de ping pong, quadra de tênis e o queridinho de todos, o jet ski. As crianças adoram e dirigem direitinho. Crianças... já estão com treze anos! Pedrinho leva muito jeito nos esportes aquáticos! Não se interessa tanto pela moto como pelo jet ski.

Verão tem que ser na praia.
Areia, sol, mar... sem horário para levantar . Sinto falta, na minha terra tem isso tudo... Fui boa com os números, eles foram bons comigo. Com a graça de Deus, dinheirinho prá alugar um canto na praia nunca faltou. Painho e Mainha diziam que não carecia desses luxos. Ah... mas eu gostava... Quando Belinha nasceu, em dia de São Jorge,  ficamos três anos sem viajar. Menina pequena, cuidamos todos dela, em nosso ninho. Quando a bichinha viu a foto de uma praia, nunca mais pensou em outra coisa. Prometi que quando ela completasse três anos, iríamos à praia e eu compraria baldinho e pá para fazermos castelos na areia. Promessa é dívida. Coisa de gente honrada.

Pedrinho! Meu Deus... meu filho...
Pensei rápido... saí da janela, desci as escadas com a chave do carro na mão, corri até a praia, arranquei  Pedrinho de lá, enfiei no carro e subi a serra. Na estrada, liguei para o Pacheco, ele sabe o que fazer... Foi assim com meu avô e com meu pai... A menina... não vi... Pedrinho, meu Deus... Pedrinho... liguei prá terapeuta também. Pedrinho chorando, confuso... Pedrinho, isso passa... isso passa... mentira! ainda hoje rezo pelo pobre diabo que cruzou meu caminho perto do mercadinho... tudo muito rápido... coisas da vida, meu pai disse... o pobre diabo... não vi... deixei prá trás... fiz terapia, rezei, fiz promessa... e o pobre diabo não me abandonou... merda... a menina... Pedrinho não viu... deixamos prá trás... meu Deus... meu filho... é o sistema... sempre foi assim... Pedrinho... peça perdão, meu filho, peça perdão... comigo... "Pai nosso que estais no Céu..."

Belinha! Meu Deus... minha filha...
Minha mente ficou em branco, um sertão em tempo de seca no peito, ardor de pimenta nos olhos... Belinha pintada de vermelho... os cabelos grudados na testa, cobrindo seus olhos fechados prá sempre... a mão que eu segurava molinha... molinha... faz mais um carinho em sua Belinha, minha filha... só mais um... Belinha... com o manto de São Jorge sobre seu corpo... a areia sendo seu sepulcro... foi tudo tão rápido... Perdão, filha, perdão... nem castelinho... nem baldinho... perdão.


sexta-feira, 9 de março de 2012

Setenta e nove anos


Ao final da ampla alameda, a construção de telhas avermelhadas abre seus portões de ferro informando que haverá libertação. Com trabalho.
Os arames farpados que cercam a imensa área dizem o contrário. Ontem, confinavam quem entrava. Hoje, todos entram e saem. E a levam consigo. Receosa, ela segue
Sua amplidão retira o ar dos pulmões, sufoca e dá tontura. Sua voz é de cascalho. Pesada, ritmada, ecoando por todos os lados. Estas vozes sem corpo ensurdecem seus ouvidos. Alguém marcha? Quem?
Seus olhos se manifestam em lágrima."Plus jamais".

O perfeito alinhamento das calçadas forma esquinas sem encontros. Os retângulos marcados no chão mostram o que não existe mais. Um, dois, três... mais de trinta. Cada teto aqui erguido, abrigou centenas de cobaias. Todas humanas.
Tudo é longo, grande e denso. Ela se encolhe. Olha para o céu em busca de uma saída, avista uma chaminé. Calafrio.
A estátua de ferro em agonia retorcida, espeta seu peito como a coroa de Cristo. Ela sangra. Mãos, crânios, ossos empilhados e expostos nas fotos por todos os lados geram a dúvida. Isso é gente?"Never again".

Os fornos concentrados na sala de paredes descascadas abrem suas bocas para engolir destinos. "Do pó vieste, ao pó retornarás". Sente frio. Ouve murmúrios pelas paredes, nada vê.
Quase tudo é cinza. O verde das árvores, o vermelho dos telhados, o branco das paredes. Exceto o céu. Soberano, abre espaço para que os altos pinheiros com ele se encontrem numa fusão verdeazul. Tentativa de esperança? Destas cores, nada mais reflete vida."Nie wieder".

Apressa o passo querendo fugir. Tudo o que ouve é o som do cascalho. Pesado, ritmado... Ela nunca mais será livre.
Na saída, lê a inscrição: "Arbeit macht Frei".
Será?

segunda-feira, 5 de março de 2012

Breve, tolo e poderoso


Sentia-se como os galhos secos e retorcidos que a encantavam no Central Park. Não precisava do vento que batia em seu rosto para saber que era inverno. Ela vivia o inverno. Presenteou-se com uma viagem à Nova York. O verão é a sua estação predileta, mas optou por buscar um certo equilíbrio escolhendo viajar em fevereiro para a Big Apple. Coerência. Poderia caminhar tranquilamente por todos os lados e não seria notada. Nada com o que já não estivesse acostumada. Nos últimos anos foi se esquecendo de sua condição feminina e de mulher. Era mais fácil assim e menos dolorido. Quando pensava no assunto, fazia uma piadinha particular. "Só dói quando eu rio..." Já não ria tanto. Naquela tarde resolveu aproveitar as liquidações na Saks. Como se fizesse grande diferença. Seu bolso pactuava com a Century 21, perto do Ground Zero. Fez outra piada de mal gosto e politicamente incorreta para si mesma, sobre buracos, catástrofes e sua conta bancária. Depois de conferir todos os departamentos da loja, marcar um horário para manicure e cabelo que não seria cumprido, sentou-se em uma cadeirinha da MAC para fazer a maquiagem. Pelo preço de dois batons, uma massagem no ego grátis. A bicha de Porto Rico era uma simpatia. Fez muitas perguntas sobre o Brasil, disse que seu parceiro queria conhecer o país, que o faturamento da MAC brasileira bateu todas as outras lojas do mundo e que sim, em Nova York ninguém olha prá ninguém. É uma cidade populosa com gente invisível. Suspirou. Ninguém olhava para ela daquele jeito há muito tempo. Quarenta e cinco minutos depois, cílios imensos e boca Russian Red A91, gostou do resultado. Sentiu um certo poder e uma beleza esquecida. Agradeceu, inusitados dois beijinhos foram trocados, pagou e foi em direção ao hotel. Não sem antes parar no estande da Chanel e passar nos pulsos e atrás das orelhas o perfume em oferta. Empurrou as duas pesadas portas da saída, ajeitou o casaco e pumba! deu um encontrão. Ooops, sorry, saiu automaticamente. O homem alto e apressado, fez um gesto com a cabeça e seguiu seu caminho. Ninguém pára em Nova York, nem para se desculpar. Ambos seguiram na mesma direção, ela com a cabeça na lua, enebriada pelo perfume e satisfeita com a imagem refletida no espelho e ele... virando para olhar para ela. Num primeiro momento, ela ficou desconfortável, será que o Russian Red me deixou com cara de palhaça? Serão os cílios? Aos poucos, começou a entender... estava sendo vista. Daquele jeito. Admirada! Ele caminhava e sem ser discreto, virava a cabeça e a procurava. As mãos dela começaram a transpirar, bem pouquinho... a pulsação acelerou. Quanto tempo fazia? Nem se lembrava mais... paquera, flerte, interesse...  e em Nova York! Abriu um sorriso de menina sem graça, teve a impressão que corava. Quantas vezes ele olhou para trás? O suficiente. Algo dentro dela derretia. Sonhou e agradeceu. Benditos sejam os longos quarteirões novaiorquinos. Ao chegar no cruzamento da 5a com 47th, o flerte teve fim. Não sem antes um último olhar e um aceno "see you" que nunca se concretizaria. Sentiu-se primavera. Decidida, retornou por onde veio, de volta à Saks. O rombo no seu cartão de crédito seria bem menor que o das Torres Gemeas.

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