quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um conto qualquer

Fulana era uma boa pessoa.
Boa mãe, daquelas que corre na hora do almoço para buscar os filhos na escola (e de quebra, bater um papo com a professora).
Boa esposa acompanhava o marido a jantares com os amigos, colegas de trabalho, estava sempre com a depilação em dia, manicure perfeita, cabelos arrumados e perfumada. Até na cama, dava para o gasto.
Boa profissional, cumpridora de prazos, tinha idéias criativas, fazia planilhas excelentes e estava no mesmo emprego há alguns anos.
Tinha poucas amizades, considerava que a maioria das pessoas que conhecia eram apenas colegas. Amiga mesmo, somente Sicrana que conhecia desde a época do colégio. Com ela, conversava sobre tudo. Fulana foi madrinha de casamento da amiga, já Sicrana, era madrinha de um dos filhos de Fulana.
No prédio, a vizinhança não tinha do que reclamar – mesmo quando os filhos de Fulana se excediam na gritaria e brincadeiras na piscina. Estes sim eram considerados pela vizinhança mimados e mal educados.
É... no geral, Fulana era uma boa pessoa. No geral.

Quem discordava disto, era Elicleide.
Fruto de uma pulada de cerca de seu pai, Eli, que não conseguiu resistir aos encantos de sua mãe, Cleide. Completamente apaixonada e sem a menor condição de ter o pai de sua filha ao seu lado, Cleide resolveu unir os dois para sempre de qualquer maneira. Assim, decidiu o nome da filha: Elicleide. Desta maneira pelo menos, perpetuava a união que jamais aconteceria de fato.

Elicleide trabalhava na casa de Fulana (“Dona Fulana, Elicleide! Olha a intimidade!”) há dois anos, desde que sua prima Jacira voltou para Sergipe.
Quem precisa, faz cara de quem gosta – é o que sua mãe respondeu, quando Elicleide perguntou se deveria aceitar ou não o emprego. Jacira já havia contado algumas situações vivenciadas com Dona Fulana, nada agradáveis. Elicleide resolveu fazer cara de quem gostava e aceitou o emprego.

Como sempre, o serviço era completo. Limpar, cozinhar, cuidar das roupas e das crianças. Entrar cedo e sair quando fosse liberada – ser mensalista tem suas vantagens e desvantagens também, mas pelo menos, não precisava dormir no emprego.
 Quase sempre chega no horário, gosta de ser pontual, mas  quando chove ou motoristas e cobradores fazem greve, se atrasa um pouco. E isso é motivo suficiente para começar o falatório de Dona Fulana.

- O que é isso, Elicleide? Eu pago prá voce estar aqui às sete horas, são quase oito! Onde já se viu? É por isso que esse país não vai prá frente, essa gente não quer trabalhar, não se organiza, bota a culpa em tudo, mas responsabilidade que é bom, nem pensar... nem pensar!

Elicleide preferia se atrasar e ouvir tudo o que Dona Fulana tivesse para dizer, a fazer qualquer outra coisa errada. Atraso, não era descontado de seu salário, já o resto...
Lavar louça era um tormento. Tremia só de ver a pilha de louça. A taça de vinho que escorregou e quase cortou sua mão, foi descontada do salário. Nunca imaginou que um pedaço de vidro de cabo comprido, fosse tão caro. Trinta e cinco reais! Onde já se viu um absurdo desses? E com tanto copo de requeijão sendo jogado fora, é um desperdício. Pelo menos, Dona Fulana permitiu que o valor fosse parcelado.

Ao longo dos dois últimos anos, morria de medo de quase tudo: de lavar, passar, de fazer o seu serviço. Nem se importava com a falta de reconhecimento, mas os descontos no salário doíam demais. Ela não fazia de propósito, seguia todas as recomendações de Dona Fulana, mas às vezes não entendia bem o que era para fazer. E algumas vezes, o que fazia dava errado, como na última vez que pediram para que limpasse a mancha no sofá branco, e ela usou água sanitária. Diacho, como iria adivinhar que couro não pode ser limpo com cândida? Esse conserto ela ainda estava pagando. E tudo o que ouviu, ainda ecoava em sua cabeça. Pensou em desistir, conversou com a mãe em casa, chorou. E ouviu a frase de sempre: “Minha filha, quem precisa faz cara de quem gosta.” Resignou-se.

Sendo essa a vida, era essa vida que levava religiosamente, de segunda a sábado, só tendo folga aos domingos.
Além do trabalho, outro compromisso que Elicleide cumpria religiosamente, era ir até a lotérica, duas vezes por semana e fazer o seu jogo na Mega Sena.
Marcava sempre os mesmos números: 04 – 12 – 27 – 33 – 41 – 58, e antes de entregar o bilhete e efetuar o pagamento, rezava a mesma oração, baixinho: “Meu sinhô, meu sinhozinho / Luz de amor e de justiça / leve aqui o meu joguinho / e abençoa, por favor / essa sua devota / e os números que ela aposta”. E seguia para sua casa. Às quartas e sábados, ficava atenta a espera do resultado. Após o resultado, sempre pensava: “Na próxima, meu sinhozinho. Tenho fé, pois água mole em pedra dura, sempre bate até que fura. Amanhã, jogo outra vez!”

Se por um lado, a fé permanecia forte e inabalada, por outro, Elicleide não se deu conta de outro sentimento que crescia dentro de si. Como a vida era desse jeito mesmo, não tinha tempo para pensar nessas coisas. Seguia em frente. E despretensiosa,  quase sabendo que o tempo era seu maior amigo crescia a passos lentos, a raiva. 


terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Moral. Moral?


Era uma bela peça de arte. Realmente, a primeira colocação foi merecida.

Na parte inferior do canto direito, era meu o nome que assinava a tela.
As cores, os traços e até mesmo a idéia, partiram de Marineide.
Mas as letras e a caligrafia que identificavam a autoria eram claras: DÉIA MENDONÇA. Com acento no E.

Incapaz de pintar e tendo que participar do concurso (nem me lembro o porque), lembrei da máxima proferida na aula de Literatura, quando o assunto era Machado de Assis, pela digníssima professora:

- Não tenham vergonha de pedir ajuda. 

Foi o que fiz, assim que me dei conta do desafio que se apresentava. Pintar um quadro para o tal concurso. (Quem foi que me inscreveu mesmo?)

Pedi.

Marineide aceitou.

O premio em dinheiro, é meu.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Bombas


Uma é doce... a outra, amarga
Envolta em papel delicado, traz prazer a cada bocado.
A outra, se aproxima aos poucos e desfecha golpe certeiro e mortal
Uma, me apraz... a outra, me desfaz.
Alguns segundos na boca, tortuosos minutos no ouvido
Uma eu devoro, a outra me consome.
Fruto de um desejo...
Fruto da desatenção...
Ambas tem seu tempo findo
Uma, meses na cintura...
A outra, anos no coração.
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