sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Pato, ovo, uva




“Frequentemente é necessário mais coragem para ousar fazer certo do que temer fazer errado.”
Abraham Lincoln
“Não ousar é perder-se.”
Soren Kierkergaard
O prato favorito de meu marido é sarapatel. Prato popular pernambucano, composto das vísceras de porco cortadas bem miúdas, sangue coalhado e tempero, muito tempero. Sendo paulistana, descendente de paulistanos e italianos, os paladares que permearam minha vida até casar-me com um descendente de nordestino eram outros. Sempre fui muito enjoada para experimentar algo que fosse diferente do “il vero sugo da Mamma”. Berinjela, só depois dos trinta – e hoje sou fã incondicional.
Tive a oportunidade de participar de um treinamento, para uma equipe de turismo que acompanharia um grupo de 150 cônjuges e funcionários de um grande banco brasileiro, numa viagem à China na época dos Jogos Olímpicos de Pequim. Várias interrogações rondavam as cabeças dos participantes daquele workshop, mas a principal era: vou ter que comer escorpião? A pergunta em si traz dois pontos que, não raro, trabalhamos em coaching. O medo do desconhecido (será que na China só tem comida esquisita?) e o julgamento (como eles se alimentam disso?)
Ousar ter uma nova experiência, seja no ambiente profissional, em outro país ou no almoço dominical familiar, solicita que estejamos abertos e preparados. Evitamos ousar por falta de informação ou por preconceito. Não raro, ambos. Este treinamento aconteceu ao redor de uma mesa, num restaurante chinês em São Paulo, onde os participantes se surpreenderam ao serem apresentados a tantas iguarias chinesas diferentes e saborosas. Nem um espetinho de escorpião foi oferecido e todos saíram satisfeitos. Claro que cada um teve a sua preferência, mas saíram certos de que também era possível ter uma experiência gastronômica excelente na China. Além de terem aprendido o motivo que levou os chineses a comerem de maneira tão diferenciada. Um povo que passou por um período histórico chamado “A Grande Fome”, certamente aprenderia a se alimentar com o que a natureza ofertasse. É um fato. Podemos gostar ou não, mas devemos respeitar e a partir do momento que temos a informação, o conhecimento, reduzimos o medo.
Se eu ainda mantivesse os hábitos alimentares de minha família, teria perdido grandes oportunidades. Entre elas, a de experimentar na China um prato de arroz cremoso combinado com lascas de pato, ovo poché e uvas verdes. Uma das combinações que até hoje me fazem salivar, trazem as recordações de uma viagem maravilhosa e de uma experiência única.
Acho que está na hora de ousar novamente e experimentar o sarapatel.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Surdez

Braços cruzados, apoiada no portão da frente de sua casa geminada, no bairro de Pinheiros. Cabelos brancos, curtos e lisos, avental puído com o nome de loja de cama e mesa, bordado gasto e marcas de gordura. O vestido também já teve vida.

- Moça, por favor. Desculpe interromper a sua caminhada, mas gostaria de saber se você ou alguém de sua família recebem pensão do INSS.

Com pressa e sem ouvidos, uso as mãos na tentativa de descartar a conversa. Inútil. A senhora é mais hábil e bondosa do que eu, consegue esticar a conversa.

- Sabe que agora estão pedindo prova de vida, assim, sem avisar? Num mês você recebe a pensão direitinho, no outro, nada! Estou fazendo uma campanha, aqui no portão, para avisar o maior número de pessoas que posso. A senhora é fotógrafa?

O coração estava acelerado, sinal de que você não estou onde gostaria, nem tendo a conversa que desejava. Se o coração queria sair, nem que fosse pela boca, um dos ouvidos começou a se interessar pela senhora. O outro continuou surdo.

- Eu não conheço por aqui um lugar para consertar câmeras, mas na Rua Quintana sei que tem. Só não sei que tipo de conserto eles fazem. É possível uma coisa dessas? Olha, desculpe te interromper assim, mas foi a única maneira de avisar as pessoas. Pedem prova de vida sem avisar!

O coração ansioso para sair pela boca e o ouvido surdo, ganharam. Sorri e fui embora.





terça-feira, 11 de setembro de 2012

Destino

Estendi a mão direita sobre a sua mão esquerda.
Com os dedos finos percorreu os leitos secos de minha palma.
Falou de amor, trabalho, saúde, família.
Suspirei um amor, sonhei com um trabalho, desejei saúde, busquei pela família.
Quinze foram os minutos que construíram a minha felicidade.
Recolhi a mão, querendo manter para sempre, ali, tudo o que ouvira.
Com a mão cerrada, chorei.


domingo, 9 de setembro de 2012

Vida ISO

A casa tinha janelas que não podiam ser abertas e que desta forma seriam eternas. Os livros ocupavam  prateleiras e mais prateleiras perfeitas e outras mais perfeitas. Tudo em ordem.
O que atrapalhava era o pó que insistia em penetrar na casa, intruso e sorrateiro, pelas frestas, vãos das portas, pelas solas dos sapatos, escondidos nos casacos, dentro do peito.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Vago


Um pé no espaço. Um pé sem corpo.
Pé solto, sem outro, pé solo, sem prumo.
Suspenso. Imenso. Tenso.
Repenso.
Prá onde vai, prá onde levo, se desespero ou se tolero.
Tropeço.
Manco. Desbanco. Atravanco.
Paro. Para, Pedro, Pedro, para.
Esse Pedro é uma parada, manda em tudo, manda e mata, mata, mata.
Para, Pedro.
Para Pedro, paro eu.
Fico sem chão.
Fico sem pé.
Sem pé, nem cabeça.
Por favor, me esqueça.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

Banheiro misterioso


- Querido, amei a casa!
- É, também gostei.
- A cozinha novinha! Vou encher as paredes com a coleção de pratos da "Boa Lembrança".
- É mesmo...
- E o piso? Lindo, fácil de limpar. Podemos ter um cachorro, as crianças vão amar, tem espaço... dá trabalho, tem que limpar, passear, ah!, mas é comercial de margarina, tem que ter cachorro!
- Sei... cachorro...
- Nossa, que desânimo! Você estava tão empolgado, o que foi?
- O banheiro de casal, não gostei.
- Deixa disso, amor... é um detalhe. Ninguém vai reparar, fica na área privativa da casa, é muito alto. Nem quando usarmos o banheiro aquilo vai incomodar. Você nem vai ver.
- Não vejo, mas sei que está lá. Assustador. Quem pensaria numa porcaria daquelas!?
- Calma, não precisa se exaltar, muito barulho por nada.
- Pensa comigo. Não faz sentido. Gastam uma grana na casa, arquitetura estilosa, jardim bacana... aí, em algum momento, decidem colocar aquela merda imensa no banheiro? De quem foi a idéia de girico?
- Amor, deixa disso. É só um detalhe...
- Detalhe!? Você viu o tamanho do "detalhe"? Se aquilo prá você é um detalhe, casada com um japonês você seria feliz, é isso? Aquilo sim é detalhe.
- Benhê, não misture as coisas. Eu gostei muito da casa e...
- Eu também gostei, mas aquilo... Já sei, antes de decorarmos a casa, compro uma bola de futebol e deixo o Luquinhas bater bola no banheiro. Quem sabe ele acerta o chute e resolve nosso problema.
- Seu problema, amor. Deve ter sido uma perua qualquer, com ataque ecológico que resolveu usar a parede para homenagear o Greenpeace. Não me incomoda, nem vou ver. Gostei de todo o resto. Pára com isso, você tá parecendo criança.
- Pára? Você viu direito aquilo? Quem é que escolhe um tréco daqueles prá decorar um banheiro? Prá decorar qualquer coisa? O casal entra na loja e começa - ai, amor... que tal um motivo floral? ui, benhê, floral é batido demais, eu curto bichinhos...
- Detesto quando você faz essa vozinha afeminada ridícula, já falei...
- É isso! Já sei o que me incomoda!
- O que, amor?
- Aqueles bichos são gays! É isso! Eu não quero usar um banheiro assim...
- De onde você tirou essa idéia?
- Os pavões, os pavorosos pavões... são dois machos! Você viu o tamanho do rabo deles!? Como eu posso usar aquele banheiro com eles lá dentro? Posso ter idéias...



terça-feira, 12 de junho de 2012

Marfim


Estar ao seu lado
Liberdade clichê
Algumas surpresas
Você
O solo caminha meus passos
De sonhos estrelas despertam 
Uma grande aventura
Viver


sábado, 19 de maio de 2012

Babel


nove e vinte e quatro trinta e seis minutos para estar dentro do carro será que vai ter transito não está chovendo isso é bom a empresa fica perto nada mais é perto nesta cidade nem a pé nem de bicicleta coisa estúpida essa agora todo mundo resolveu pedalar na calçada na marginal em cima de velho cachorro jovem foco termina de fazer o que você começou kit promocional pen drive laptop check list nem sei quantas vezes conferi este material practice makes perfection Oi, querido, não posso conversar agora, me chame mais tarde, estou saindo para a apresentação. agora vai perguntar Qual apresentação? eu falo ele não escuta eu vejo e finjo que não percebo assim levamos nem me importo mais cada um tem o que merece o que eu mereço é isso um bundão dez vezes bundão O material no qual tenho trabalhado como uma besta nos últimos quinze dias, darling, esqueceu? offline resolvido infraestrutura fraca ajuda nessas horas cai o sinal da internet corta a conversa chata cadê a chave do carro achei na bolsinha preta tá aqui e a chave do apê do john também passo lá depois tô precisando dele tenho que escovar os dentes antes de sair batom sombra rímel delineador prá disfarçar essa droga de lifting cadê a escova bolsinha verde aqui tá tudo aqui esse cabelo tá um horror marcar para o sábado no salão mudar a cor retocar a raiz castanho escuro mexas melhor deixar como está equipe que está vencendo não se troca preciso de um ar mais jovem cara de mãe do john nem pensar cadê os óculos nove e vinte e seis vai dar certo estou preparada sempre estou over preparada nada pode me abalar só eu mesma a dora diz isso sempre oito anos falando a mesma coisa duas vezes por semana sou maior que isso vai ser excelente como sempre nove e trinta saio em meia hora ar sumiu pânico malditos morcegos no estômago pressão ar preciso de ar cadê o saquinho preciso respirar aqui não dá funcionário olhando melhor no banheiro pegar o saquinho a bolsa minha vida na bolsa respirar no saquinho que fica dentro da minha vida que cabe numa bolsa pânico suor é só a minha cabeça inspira... expira... vai dar certo... estou acostumada... i'm really used to... inspira... expira... escuta aqui mocinha você tá preparada muito preparada este mercado é seu ninguém é tão preparada quanto você nem a helena sabe o que você sabe nem tem os clientes que você tem esquece essa traíra inspira... expira... toda vez a mesma coisa tomo um calmante melhor não eu consigo já consegui outras vezes muitas vezes centenas de vezes grupos grandes pequenos médios inglês alemão espanhol fluência prática desde pequenininha aprendi faça assim faça assado repete outra vez e mais outra e repete tá errado de novo repete practice makes perfection repassei várias vezes a lista de presentes tudo em inglês cool keep cool inspira... expira... dez anos neste mercado ninguém faz este trabalho como eu ninguém inspira... expira... é só mais uma turma a última pacote entregue serviço feito tudo perfeito sou perfeita vou arrasar merda dez horas Tô atrasada!


terça-feira, 10 de abril de 2012

Amigos on the rocks


Beto, mostra o pau.
O que?
Mostra o pau aí, cara.
Tá louca? Ainda não bebi tanto prá fazer isso aqui na frente de todo mundo...
Bia, tá doida? Sua caipirinha nem chegou e você já tá na lua?
Doida nada, Verinha... tô procurando inspiração.
Pô, Bia... procurando inspiração justo com o meu pau?
É um exercício, aula de escrita. Preciso fazer um texto que comece com mostre o pau...
Escrita? Que coisa é essa menina, ainda existe curso de caligrafia?
Escrita criativa seu besta... oficina com escritor e coisa e tal. Na hora do sorteio quem-escreve-o-que, caiu prá mim "mostre o pau". 
Pô, garota... e você quer logo o meu?! Pega de outro...
Não é prá pegar... é prá mostrar. Sei lá... como é que alguém começa um texto assim? Pensei num cara que tem o pau pequeno, compra aquela bomba de aumentar o pênis, a porra entala no bilau e ele está no médico abrindo a calça prá mostrar a desgraça que aconteceu... mas não encaixou. Se o cara tá com o tubo entalado no dito cujo, vai direto pro hospital... Ele não vai "mostrar" nada, já tá exposto...
Troca essa cena aí, Bia... só de ouvir voce falar nisso me encolho todo... deve ser uma dor da porra...
E precisa ser uma história com homem?
Como assim, Verinha?
Ué, esse pau que voce vai mostrar, precisa ser masculino?
Essa é nova... ô princesa, me diz quando um pau não é masculino? Só se for aquele que atiraram no gato e o bicho não morreu...
Transplante, Beto! E se ela escrever uma cena de um transplantado?
Caríssima, ainda assim o material a ser transplantado será masculino. Muita coisa mudou nessa vida, mas isso ainda não... Eu teria sido avisado, concordam? Outra coisa, não vou te chamar de anta em consideração aos nossos anos de amizade... é implante, mulher... ou voce acha que alguém morre e tem o bilau cortado prá ser transplantado. Tipo córnea?
Não enche, cara... eu li na internet que os chineses já fizeram isso mesmo... a operação foi um sucesso mas o receptor rejeitou o implante por questões psicológicas... tiveram que cortar o bilau depois...
Esse papo prá mim tá virando filme de terror. Bia, voce não pode escrever sobre outra coisa?
Não. Escolhi um número e a frase era essa. Sorteio é assim mesmo... por isso que nem jogo na loteria, só me ferro com os números... Podia ter sido sorteada com o "atropele um escritor"... de raiva, o personagem seria o professor...
Sádica...
Cínica...
Nem uma coisa nem outra... já pensou, ler o texto prá ele onde eu o atropelo? Ah... bacana, vai?
E se a tua cena for um cara mijando? Ele abre a calça e mostra o pau...
Prá quem, Vera? Prá parede ou prá arvore? Mostrar implica que alguém vai ver...
Será que a gente pode falar de outra coisa? Amigo! Traz mais uma dose de Chivas e gelo, por gentileza... muito gelo...
A idéia da bomba peniana me parece o melhor caminho... fiz umas pesquisas,  tem cada video bizarro. Tem um tal de Falontex... o cara usa o dedão prá mostrar a eficácia do produto usando pesinhos de academia... rolei de rir... parei quando me lembrei que  estava na Livraria Cultura e a mesa ao lado também tava rindo... da minha cara.
Hoje o bar tá rindo da minha cara, com duas mulheres na minha mesa só falando de pau comigo...  Queridão, traz mais uma caipirinha prá minha querida sem noção aqui, uma porção de bolinho de arroz, mais gelo e outra dose prá mim...valeu!
Bia, tem uma historinha do Beto mostrando o pau alheio...
Que porra é essa, Vera?! Tá me estranhando?
Estranhando o que... Bia, a gente foi ao show do Fish na cara do palco, pertinho mesmo. O vocalista ali, na nossa frente, de sainha inglesa e o nosso amigo aqui prá lá de Bagdá e ... surpresa! O escocês de kilt estava sem cueca, como reza a tradição. O que o Beto faz?
Agora vão me azucrinar a vida inteira...
Ele dá um baita salto no meio do show, levanta a saia do cara e mostra pra plateia toda o tamanho do segredo inglês!
Beto, brincadeira...
No estado que eu me encontrava, querida, tudo era possível. Considere meu gesto como uma pesquisa de costumes... foi um ato informativo/educacional para uma platéia ignorante a respeito dos costumes escoceses, já corrigindo a Verinha que chamou o Derek Dick de inglês. Com esse nome, meu gesto foi coerente...
Engraçado, mas não me serve...
Começa com um cara mijando então... ele abre a calça, bota o pau prá fora...
OK... e continuo como?
Isso é um problema seu, não meu... só tô dando idéias...
Olha, garotas, até entendo que voces fiquem com esse papo de pau prá cá e prá lá... mas eu prefiro trocar de assunto...
Pode ser uma cena de sexo, o cara abrindo a calça, vai rolar um clima...
Achei muito óbvio começar assim... depois eu ia me enrolar toda prá terminar...
Meninas, amadas... sério, desse jeito eu vou precisar de muito whisky... é muito pau pra um cara só... meu assunto é outro...
Ah... se eu tivesse sido sorteada com o "afogue um gato"... seria muito mais fácil...
Bia, esse seu professor é muito estranho...
Também acho, Verinha... também acho...





terça-feira, 20 de março de 2012

Perdão uma vírgula

É o sistema.
Foi assim com meu pai e antes dele com meu avô.
Nasci na zona sul, viajei pelo mundo antes de aprender a falar, diplomatas foram meus colegas de classe, domino o inglês e o politiquês perfeitamente. Aprendi cedo.
Aos treze já dirigia uma cinquentinha vermelha e linda, levando na garupa uma despeitosa amiga. Percorri todas as alamedas do condomínio em Vinhedo, primeiro com a moto e depois com o carro. Orgulhoso, papai exibia-se aos seus ardilosos amigos entregando a mim a responsabilidade de ir ao mercadinho com seu carro. Com um assobio e um arremesso, as chaves estavam nas minhas mãos.

É o sistema.
Foi assim com meu pai e antes dele com meu avô.
Nasci num bairro de merda, vivendo na merda e sem educação. Aprendi a falar do jeito que dava, comecei a ler aos treze e até hoje não escrevo bem. Ruim nas letras, boa nas contas. No externato municipal, minhas colegas tinham barriga e os moleques um passado na Febem. Desde logo entendi que os números não aceitam desaforo. Comecei a trabalhar com a benção de Mãinha que jurava que eu tinha nascido iluminada. Acreditei. Consegui comprar o primeiro carro da familia. Painho, ficou danado de tanto orgulho.

Verão tem que ser na praia.
Areia, sol, mar... sem horário para levantar, celular com sinal insuficiente,  convidados escolhidos a dedo e espaço para negócios. Caseiro, babá, faxineira, cozinheira e quem mais estiver para nos servir e cuidar dos meninos. Sou filha de Deus, mereço umas férias.
Quatro suítes, edícula para as crianças com três beliches, de frente para o mar, um sossego! PS3, piscina, mesa de ping pong, quadra de tênis e o queridinho de todos, o jet ski. As crianças adoram e dirigem direitinho. Crianças... já estão com treze anos! Pedrinho leva muito jeito nos esportes aquáticos! Não se interessa tanto pela moto como pelo jet ski.

Verão tem que ser na praia.
Areia, sol, mar... sem horário para levantar . Sinto falta, na minha terra tem isso tudo... Fui boa com os números, eles foram bons comigo. Com a graça de Deus, dinheirinho prá alugar um canto na praia nunca faltou. Painho e Mainha diziam que não carecia desses luxos. Ah... mas eu gostava... Quando Belinha nasceu, em dia de São Jorge,  ficamos três anos sem viajar. Menina pequena, cuidamos todos dela, em nosso ninho. Quando a bichinha viu a foto de uma praia, nunca mais pensou em outra coisa. Prometi que quando ela completasse três anos, iríamos à praia e eu compraria baldinho e pá para fazermos castelos na areia. Promessa é dívida. Coisa de gente honrada.

Pedrinho! Meu Deus... meu filho...
Pensei rápido... saí da janela, desci as escadas com a chave do carro na mão, corri até a praia, arranquei  Pedrinho de lá, enfiei no carro e subi a serra. Na estrada, liguei para o Pacheco, ele sabe o que fazer... Foi assim com meu avô e com meu pai... A menina... não vi... Pedrinho, meu Deus... Pedrinho... liguei prá terapeuta também. Pedrinho chorando, confuso... Pedrinho, isso passa... isso passa... mentira! ainda hoje rezo pelo pobre diabo que cruzou meu caminho perto do mercadinho... tudo muito rápido... coisas da vida, meu pai disse... o pobre diabo... não vi... deixei prá trás... fiz terapia, rezei, fiz promessa... e o pobre diabo não me abandonou... merda... a menina... Pedrinho não viu... deixamos prá trás... meu Deus... meu filho... é o sistema... sempre foi assim... Pedrinho... peça perdão, meu filho, peça perdão... comigo... "Pai nosso que estais no Céu..."

Belinha! Meu Deus... minha filha...
Minha mente ficou em branco, um sertão em tempo de seca no peito, ardor de pimenta nos olhos... Belinha pintada de vermelho... os cabelos grudados na testa, cobrindo seus olhos fechados prá sempre... a mão que eu segurava molinha... molinha... faz mais um carinho em sua Belinha, minha filha... só mais um... Belinha... com o manto de São Jorge sobre seu corpo... a areia sendo seu sepulcro... foi tudo tão rápido... Perdão, filha, perdão... nem castelinho... nem baldinho... perdão.


sexta-feira, 9 de março de 2012

Setenta e nove anos


Ao final da ampla alameda, a construção de telhas avermelhadas abre seus portões de ferro informando que haverá libertação. Com trabalho.
Os arames farpados que cercam a imensa área dizem o contrário. Ontem, confinavam quem entrava. Hoje, todos entram e saem. E a levam consigo. Receosa, ela segue
Sua amplidão retira o ar dos pulmões, sufoca e dá tontura. Sua voz é de cascalho. Pesada, ritmada, ecoando por todos os lados. Estas vozes sem corpo ensurdecem seus ouvidos. Alguém marcha? Quem?
Seus olhos se manifestam em lágrima."Plus jamais".

O perfeito alinhamento das calçadas forma esquinas sem encontros. Os retângulos marcados no chão mostram o que não existe mais. Um, dois, três... mais de trinta. Cada teto aqui erguido, abrigou centenas de cobaias. Todas humanas.
Tudo é longo, grande e denso. Ela se encolhe. Olha para o céu em busca de uma saída, avista uma chaminé. Calafrio.
A estátua de ferro em agonia retorcida, espeta seu peito como a coroa de Cristo. Ela sangra. Mãos, crânios, ossos empilhados e expostos nas fotos por todos os lados geram a dúvida. Isso é gente?"Never again".

Os fornos concentrados na sala de paredes descascadas abrem suas bocas para engolir destinos. "Do pó vieste, ao pó retornarás". Sente frio. Ouve murmúrios pelas paredes, nada vê.
Quase tudo é cinza. O verde das árvores, o vermelho dos telhados, o branco das paredes. Exceto o céu. Soberano, abre espaço para que os altos pinheiros com ele se encontrem numa fusão verdeazul. Tentativa de esperança? Destas cores, nada mais reflete vida."Nie wieder".

Apressa o passo querendo fugir. Tudo o que ouve é o som do cascalho. Pesado, ritmado... Ela nunca mais será livre.
Na saída, lê a inscrição: "Arbeit macht Frei".
Será?

segunda-feira, 5 de março de 2012

Breve, tolo e poderoso


Sentia-se como os galhos secos e retorcidos que a encantavam no Central Park. Não precisava do vento que batia em seu rosto para saber que era inverno. Ela vivia o inverno. Presenteou-se com uma viagem à Nova York. O verão é a sua estação predileta, mas optou por buscar um certo equilíbrio escolhendo viajar em fevereiro para a Big Apple. Coerência. Poderia caminhar tranquilamente por todos os lados e não seria notada. Nada com o que já não estivesse acostumada. Nos últimos anos foi se esquecendo de sua condição feminina e de mulher. Era mais fácil assim e menos dolorido. Quando pensava no assunto, fazia uma piadinha particular. "Só dói quando eu rio..." Já não ria tanto. Naquela tarde resolveu aproveitar as liquidações na Saks. Como se fizesse grande diferença. Seu bolso pactuava com a Century 21, perto do Ground Zero. Fez outra piada de mal gosto e politicamente incorreta para si mesma, sobre buracos, catástrofes e sua conta bancária. Depois de conferir todos os departamentos da loja, marcar um horário para manicure e cabelo que não seria cumprido, sentou-se em uma cadeirinha da MAC para fazer a maquiagem. Pelo preço de dois batons, uma massagem no ego grátis. A bicha de Porto Rico era uma simpatia. Fez muitas perguntas sobre o Brasil, disse que seu parceiro queria conhecer o país, que o faturamento da MAC brasileira bateu todas as outras lojas do mundo e que sim, em Nova York ninguém olha prá ninguém. É uma cidade populosa com gente invisível. Suspirou. Ninguém olhava para ela daquele jeito há muito tempo. Quarenta e cinco minutos depois, cílios imensos e boca Russian Red A91, gostou do resultado. Sentiu um certo poder e uma beleza esquecida. Agradeceu, inusitados dois beijinhos foram trocados, pagou e foi em direção ao hotel. Não sem antes parar no estande da Chanel e passar nos pulsos e atrás das orelhas o perfume em oferta. Empurrou as duas pesadas portas da saída, ajeitou o casaco e pumba! deu um encontrão. Ooops, sorry, saiu automaticamente. O homem alto e apressado, fez um gesto com a cabeça e seguiu seu caminho. Ninguém pára em Nova York, nem para se desculpar. Ambos seguiram na mesma direção, ela com a cabeça na lua, enebriada pelo perfume e satisfeita com a imagem refletida no espelho e ele... virando para olhar para ela. Num primeiro momento, ela ficou desconfortável, será que o Russian Red me deixou com cara de palhaça? Serão os cílios? Aos poucos, começou a entender... estava sendo vista. Daquele jeito. Admirada! Ele caminhava e sem ser discreto, virava a cabeça e a procurava. As mãos dela começaram a transpirar, bem pouquinho... a pulsação acelerou. Quanto tempo fazia? Nem se lembrava mais... paquera, flerte, interesse...  e em Nova York! Abriu um sorriso de menina sem graça, teve a impressão que corava. Quantas vezes ele olhou para trás? O suficiente. Algo dentro dela derretia. Sonhou e agradeceu. Benditos sejam os longos quarteirões novaiorquinos. Ao chegar no cruzamento da 5a com 47th, o flerte teve fim. Não sem antes um último olhar e um aceno "see you" que nunca se concretizaria. Sentiu-se primavera. Decidida, retornou por onde veio, de volta à Saks. O rombo no seu cartão de crédito seria bem menor que o das Torres Gemeas.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Espelho


O vento corta a pele, o azul do céu convida o olhar.
Muitos falam, pouco se compreende.
Luzes que cegam e entretém, portas se abrem... vai e vem. Ninguém.
Por todos os lados imagens dobradas, reflexos do que foi e do que será.
Sem espaço para o novo, o que é velho se reinventa.
Aquele que caminha na outra calçada está ao meu lado?
Vejo mas não reconheço. Fotografo, marco, registro.
Por onde olho, tudo se repete em sequências idênticas, lineares e infinitas.
Sentado, pausa para o cigarro. Observa.
A cidade tudo reflete.
O que ouve cala.
E o que sabe, guarda.


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Simplicidade

Café da manhã é minha refeição predileta.
Nonna Nelly dizia que devemos nos alimentar pela manhã como um rei, almoçar como um príncipe e jantar como um mendigo. Ela também possuía um prato, que ficava pendurado na parede da cozinha, na casa da Rua Baiburuas com a seguinte frase: "Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe."
A rua não existe mais com este nome, hoje homenageia o parente de algum vereador de São Paulo. O prato se quebrou, mas o hábito de tomar café da manhã como uma rainha, permaneceu.
Pães, frutas, cereal, leite, manteiga, margarina, geléia de laranja... organizo tudo na mesa da cozinha. Gosto de ver a mesa completa parecendo buffet de hotel. Isso acontece por aproximadamente quatro dias, na sequencia da exagerada compra do supermercado. Pequenos prazeres.
Sem o café, do tipo que não precisa fazer força prá sair do bule, preto mesmo - o dia não começa.
Tenho em casa uma linda cafeteira espressa - só usada em ocasiões especiais - e uma outra do tipo italiana, sextavada, de alumínio, que você coloca a água na parte inferior, depois o filtro - coloca o café sem forçar a barra - e por último a peça que precisa ser rosqueada e que será o depósito do ouro em líquido das minhas manhãs.
As duas peças se quebraram. Descobri isso logo cedo, preparando minha mesa real.
O mal humor começou a se instaurar, a ponto de pensar na possibilidade de tomar chá de maçã no lugar do café. Idéia de girico! Chá de maçã? E a cafeína, como fica?
Antes que eu me encontrasse com algum ser vivente em casa e pusesse a vida dele (ou dela) em risco, me lembrei de um brinde que meu marido ganhou no final do ano passado. E que eu desdenhei.
Lá estava ela... pequenina, com suporte em alumínio, um coador com cara de infância e uma xícara vermelha, de ágata. Voltei no tempo.
Ferver a água, acrescentar o pó ao coador, posicionar a xícara e esperar o meu despertador matinal escorrer despertou em mim tantas memórias quanto novos pensamentos.
Envolta em tantas "nespressos", cafeteiras possantes, chiques, deslumbrantes e deslumbradas, há muito tempo eu não apreciava o lento processo de coar o café.
Ferver... dosar o pó... aguardar.

Simples assim.

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