terça-feira, 9 de abril de 2013

A pilha de alho

Eu tenho medo dos cinco minutos.
Bisa Amélia

Doutor, a gente passa duas horas por dia vindo pro trabalho, oito horas trabalhando e duas horas no caminho de casa. Sem chuva. Não é fácil. Chego em casa e tem coisa para fazer. Se eu gosto do meu trabalho? Gosto sim. O mercado é colorido, animado, tem vida. O senhor conhece a nossa loja? É bonita, grande, mais limpa que a minha casa - e olha que minha patroa é preocupada com essas coisas de limpeza. Sempre ralhando com os meninos. Arruma isso! Limpa essa sujeira! Tira a roupa do chão! Dorinha bota ordem em tudo. O mercado? Logo na entrada é o meu setor, tudo organizado, perfeitinho, banana, melancia, caqui, abacate, no capricho! Dá um trabalhão danado empilhar as frutas, são caixas e mais caixas, haja braço. Quem vê pensa que é fácil. Desgramera é quando tá tudo acertado e a pilha desmonta e sai rolando por debaixo da bancada laranja-manga-limão-mexerica. Acontece de vez em nunca. Podia não ter acontecido. Lasquera. A que horas eu entro? Começo cedo, às cinco, deixo cada coisa no seu lugar, tudo brilhando antes da freguesia chegar - freguesia não, os clientes - o encarregado não deixa a gente chamar as madame de freguesa, diz que é mania de feirante. Quanto tempo? Quase 7 anos. Parece conta de mentiroso, né doutor? Tenho muita história da loja, conquistei respeito, os clientes gostam de mim, tenho bons colegas. A Maria dos frios, o Claudinei do estoque, o seu Durval, o Ponto-e-vírgula da peixaria, as meninas do caixa e agora tem o Estrangeiro! Ele fala tudo enrolado, diz que é brasileiro mas foi embora pro Peru ainda menino de colo. Voltou agora, logo na idade de pegar exército, mas deu sorte, com tatuagem não aceitaram o rapaz. Eu nunca soube que Peru era um país. Só conhecia aqueles que a Maria dos frios fatia como ninguém. As pessoas falam que a máquina corta tudo direitinho. Que nada! Precisa de braço, aquele vai-e-vem, saber limpar as cascas sem cortar a carne fora, ajustar a lâmina para fatiar do jeito que o cliente quer. Se a coisa está bem feita é porque alguém fez, não foi a máquina. Claro que a gente erra também. O senhor tem um copo d'água, por favor? Garganta seca, muito tempo falando. Obrigado. Bom, falei que a nossa loja é uma belezura de tão limpa, mesmo assim tem coisa que a gente não controla. Um azar danado, justo com a dona Lucia, freguesa antiga, chama a gente pelo nome, cumprimenta, pergunta dos filhos. Só falta dar beijinho! Desculpe, doutor, é que ela é bacana mesmo. Ela tem um jeito engraçado, fala alto, é animada, sabe o que quer. Peixe, só compra com o Ponto-e-vírgula. O senhor acredita que numa terça, dia de sacolão na loja, ela escorrega numa folha de alface e se arrebenta toda? O joelho virou prum lado e o corpo pro outro. Uma folha de alface parou Dona Lucia por 6 meses. Depois de um tempo ela voltou, cadeira de rodas, contando que estava fazendo fisioterapia e que faltava pouco para andar. Manteve o sorriso, continuou cumprimentando, chamando pelo nome, mas a loja tomou um processo. Aquilo foi feio, sobrou pra todo mundo. Na loja, até casamento terminou. Eu tava organizando o corredor 5, bolachas, biscoitos, chocolate, quando a mulher mandou um tapa, mas um tapão dos bons na cara do marido. Ele, jeito de sonso, solta um "que é isso!?", ela com um pacote de mentirinha na mão, grita que não aguentava mais, que o casadinho estava ao lado da mentirinha, que aquilo era um sinal, que já tava desconfiada fazia tempo e que viu como ele alisou as laranjas na hora de escolher entre a seleta e a lima - e que ele não alisava ela daquele jeito há um tempão. E que isso era um sinal. Sinal do que, doutor? Os dois largaram todas as compras no carrinho. Ela aos prantos, ele dizendo que não era nada disso, que ela estava enganada, desde quando biscoitinho era sinal de alguma coisa. Vai entender, doutor, vai entender. Cada louco que a gente encontra pela vida. Quem sou eu pra julgar, ainda mais na minha situação? Fui voando pro corredor 8, guardar os potes de sorvete senão, além de ter que colocar tudo o que tinha no carrinho nas prateleiras, a loja ia ter prejuízo. Isso não pode. A faca? Sempre carrego uma por causa da degustação. Uma gentileza e também uma forma de vender o que está quase passando do ponto. Os clientes compram com os olhos e com o estômago. Experimentou, comprou. Se estiverem com fome, levam mais ainda. Como foi? Já disse, não sei explicar, doutor. Me deu uns 5 minutos. Eu tinha acabado de montar a pilha. Veio a madame, toda grossa, me olhando feio. Ela enfiou a mão por baixo de tudo pra escolher uma cabeça de alho. UMA cabeça de alho. Foi alho pra todo lado. Tudo no chão. Uma sujeira, trabalho perdido. Eu já tinha sacudido no ônibus, tomado chuva e cheguei atrasado. Perdi a cabeça. Meti a faca nela. Então doutor, vai me defender?


set, 2012
foto: Sylvia Beatrix

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...