quarta-feira, 23 de março de 2011

Consciência tranquila

Conferiu pela última e definitiva vez todo o equipamento necessário: lenço branco, placa de madeira, alfinetes, pinça e tesoura sem ponta. A  barraca surrada já estava montada, a lua brilhava no céu. Chegou a hora.
Nem se lembrava mais há quanto tempo planejava isso. Parecia uma eternidade, mas na realidade não fazia mais que três anos e isto não era importante. O que realmente importava era o sentimento que nutria desde o inevitável dia em que sua mãe lhe contou aquela história pela primeira vez. Medo.
Estava cansado de sempre se sentir entre a cruz e a caldeirinha quando fazia alguma coisa. Qualquer coisa. Dúvidas sinistras rondavam sua pequena, mas já confusa, cabeça. Qual o caminho devo tomar? Falar ou não a verdade? Oras, e o que é verdade? Quem decidiu o que é certo ou errado? Onde está o caderno de regras? E por que as abomináveis regras não são aplicadas igualmente a todos?
Conhecia muitos iguais a ele, que se safavam facilmente – e sempre imaginou o que teriam feito para saírem ilesos. Como eles conseguiam? Desde que ouviu a historia, soube na hora quem estava por trás de tudo isso. E desde então, nunca mais teve sossego. Precisaria se livrar dele.
Dia e noite, em casa, com amigos, nos finais de semana, ficava atordoado com a idéia de que ele pudesse aparecer e cricrizar a sua vida: isso não é certo! Você será descoberto! Faça isso! Pense bem! Olhe o caminho!
Basta! Hoje, terminaria seu tormento.
Acomodou-se na barraca, tirou os tênis pisca pisca. A tênue luz da lua era suficiente para dar a visibilidade necessária, à espera do inimigo. Vantagens do campo. O som do vazio externo aos poucos foi se transformando e trazendo a vida da mata. Cricricri... cricricri... Seus sentidos o alertaram: estão por perto. Ele está lá fora.
Repensou minuciosamente os detalhes de seu fabuloso plano de liberdade: jogar o lenço sobre um deles e com as mãos em concha, envolve-lo sem machucar, de maneira firme para que não fuja. Com a esquerda, mante-lo imóvel e com a direita, espetar o primeiro alfinete numa das patas, prejudicando sua mobilidade. Espetar o segundo alfinete e depois o último, no rabo.
Já livre do lenço e com seu inimigo sem chance de escapar, observar. E agora, seu estúpido? Vai continuar me assombrando? Acha que pode me atormentar assim e sair impune? Hoje, chegou a minha vez... Esperei tempo demais, não sou mais o menino bobo de antigamente, já tenho dez anos!
A sua dúvida perversa era se cortaria primeiro uma das patas, ou se espetaria outro alfinete no corpo. Optou por cortar a pata. Sentiu prazer com a imagem de agonia que veio à sua mente.
Estava imerso em seus pensamentos e não se deu conta que os barulhos da mata aumentaram e ficaram bem mais próximos. De repente, um deles entrou em sua barraca, pulando rapidamente e direto em seu rosto. Com o susto, o instinto falou mais rápido que o planejamento, e com um tapa rápido afastou o inseto de seu rosto e logo pegou um tênis, e paft! Matou o grilo.
Olhou, desolado para o bicho esmigalhado. Que droga, não era assim que eu tinha pensado. Tanto planejamento detalhado, tanto tempo investido...
Porém, uma leveza que há muito não sentia, invadiu seu recém formado corpo infantil e tomou todo o seu ser. Sorriu.
Finalmente estava livre do terrível Grilo Falante. Agora, podia mentir à vontade.

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