segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saudade

Tãntãntãn. Seco, rápido e sem espaços. Nunca foi muito religioso, não ia à missa, evitava enterros. Batizado, foi a um só. Em casamentos gostava da festa, de encontrar os amigos, tomar whisky sem gelo e temperado com água bem gelada, por horas a fio, mantendo o mesmo copo. Quando a água esquentava, pedia outra. E claro, mais uma dose. Por causa disto, no início causava estranheza o tãntãntãn noturno, diário, preciso, metódico e infalível produzido logo após murmurar a oração. Infalível sim, pois mesmo depois de uma festa de casamento o som era produzido. Ou ainda, quando chegava tarde da noite, após um jantar de trabalho ou happy hour com os amigos, como um autômato, sentava-se na beirada da cama, murmurava (mais parecia um grunhido), fazia o sinal da cruz, deitava, puxava as cobertas sobre o corpo fechava a mão esquerda e com o osso do dedo médio batia na cabeceira de madeira da cama de casal. Tãntãntãn. Seco, rápido e sem espaços. - Ninguém agüenta esse clima! Olha eu aqui, de novo, me descascando como uma cebola. Casaco, malha, cachecol, moletom, segunda pele... Eu mereço! Por instantes, foi despertada com a ladainha de sempre. Até sorriu. Silvana, sua colega de trabalho, sempre tinha alguma coisa para reclamar. No verão, excesso de calor. No inverno, excesso de frio. Primavera, outono... Carolina voltou os olhos para o computador e fingiu concentração. A proposta precisava ser terminada ainda hoje, na verdade, deveria ter sido terminada ontem. Mas ontem, estava tão longe que nem sabia quando era. Lembrou-se da foto. A festa a fantasia, o chapéu de papa, a batina. Sorriu, adorava a lembrança que a foto evocava. Riu de novo, pois achou engraçado lembrar-se de uma foto que a fazia lembrar-se de outra coisa. Devaneios, doces e totalmente inapropriados para a ocasião. Precisava se concentrar na proposta, mas seus pensamentos não estavam colaborando. - Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o ultimo instante seu direito de dizê-la. Voltaire, ele sempre citava Voltaire. Essa frase especificamente, que gostava de praticar com os outros, mas não em casa. Ai se alguém discordasse dele! Com os amigos, justiça, liberdade de expressão e todas aquelas baboseiras masculinas. Todas passíveis de compreensão e perdão hoje. Deveria tê-las perdoado ontem. Carolina estava longe novamente, com seus pensamentos na direção oposta à do computador em sua frente. Pausa para o café. A proposta vai ter que esperar um pouco mais, sua mente está indomável, com fome de passado. - ... e sabe o que ele me disse? “Quando uma pessoa se casa, a vaga de namorado fica em aberto”. Voces acreditam!? Quase caí de costas!!! Que saia justa, logo comigo! Carolina achou graça do comentário. Impressionante como tem cara de pau no mercado, mas com cantadas engraçadas. Podia ser brega, mas tinha a sua graça. Por um instante desejou que tivesse acontecido com ela esta situação. A colega se divertia com o que lhe acontecera e entretinha a pequena platéia da hora do break. “Se fosse comigo, o que eu faria?”, pensou Carolina. Terminou seu café, voltou para sua proposta. Concentração zero. Antes de recomeçar com a fatídica tarefa, deu uma olhada na caixa de entrada dos emails, abriu alguns e deixou todos sem resposta. Não sabia o que responder. - Tinha uma música, meio anos 90, que terminava com voyage, voyage. Carol, voce se lembra qual é? Claro que se lembrava e ele sabia disto. Ela parecia o “qual é a musica?”, acertando a maioria das respostas. Deu a dica para que ele pudesse fazer a busca na internet e depois fazer o download. Na verdade, baixar. Sempre achou isso feio – baixar – parecia coisa de terreiro, mas é assim que todo mundo se refere a este processo: baixar arquivo, baixar filme, baixar isso, baixar aquilo... Assim eles seguiam, ela se lembrava da música e ele fazia a trilha sonora. Desistiu da proposta. Quem esperou um dia, espera dois. Despediu-se de todos e, mesmo sem precisar, inventou uma desculpa qualquer para sair mais cedo – pelo menos, não iria enfrentar o transito infernal das 6 da tarde. E poderia alimentar a sua mente sem sentimento de culpa. Chegou em casa, chaves no pote, bolsa na cadeira da porta de entrada. Foi para a cozinha, abriu a geladeira, tirou o pote com o resto do almoço e ligou a TV. Assim, de pé, televisão ligada, comida fria e colher na mão, engoliu o macarrão com molho. Quinze minutos depois, joga tudo na pia, desliga a TV, apaga a luz. Volta, esqueceu de dar comida ao cachorro. Sobe os quinze degraus, entra no quarto, tira os sapatos. Carolina senta na beirada da cama, murmura uma oração, faz o sinal da cruz, deita, puxa as cobertas sobre o corpo fecha a mão esquerda e com o osso do dedo médio bate na cabeceira de madeira da cama de casal. Tãntãntãn. Seco, rápido e sem espaços, como suas lágrimas.

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