sexta-feira, 6 de maio de 2011

Hermanas

Alguns dias são mais iguais que outros. O despertador toca e aquela famosa história “Você é as Escolhas que Faz” começa a ser contada. Levantar ou ficar mais um pouco na cama, vestir saia ou calça, usar sapato de salto ou uma rasteirinha, batom rosa ou gloss, trocar de bolsa ou ficar com a mesma – tantas coisas a serem decididas e a cafeteira ainda não começou a produzir a parte que lhe cabe.
Nestas primeiras horas, você vai lentamente descobrindo quem é – no dia em questão, descobre que é alguém que se atrasou para o trabalho, que ofereceu um show gratuito de calcinha bege ao porteiro do prédio quando bateu um vento indecoroso na saída de casa, que a vaga disponível mais próxima ao seu local de trabalho está a quatro quadras ladeira abaixo e o salto dez vai fazer um teste de resistência – assim como os seus pés, que não tem a mais remota idéia de como tirar a mancha rosa da novíssima camisa off white e, por fim, que deixou na outra bolsa a nécessaire com os absorventes necessários para a visita mensal de Chico. Praticamente uma vida aconteceu aqui e eu ainda nem liguei o computador no trabalho.
Mas, prezado leitor, vamos nos abrir ao Universo. Paulo Coelho e Deepak Chopra dizem que tudo é possível, quem sabe?
Já completamente estressada às oito da manhã, dou início à próxima etapa do dia. Procedimentos profissionais usuais: pegar um café, ligar o computador, acertar as persianas da janela em frente à minha mesa, esperar que todas as cinco páginas memorizadas do Google Chrome sejam carregadas, iniciar o Outlook , abrir o Skype e verificar quem está online, coisas deste tipo. Interrompo a página do banco que está sendo carregada pois de nada adianta ficar acessando a conta pelo sistema remoto, já que a porcaria do saldo que se apresenta insiste em não melhorar. Por sorte, o saldo de cor vermelho freqüente terá dado lugar ao preto inconstante e com tão poucos números antes da vírgula, que nem um ponto entre eles se faz merecedor. Esta malfadada página pode gerar a necessidade de um antidepressivo. É melhor clicar em “fechar” agora!
Dou uma olhada rápida no GMAIL para verificar quais são as correntes salvadoras e inquebráveis que me enviaram hoje (na maioria das vezes, simplesmente deleto... mas temerosa. Vai que... toc toc toc, bato na madeira), ler os textos maravilhosos da turma de escrita, rir com alguns vídeos, conhecer meus novos seguidores do Twitter e confirmar ou não os convites de amizade recebidos pelo Facebook. Verifico o Outlook e vejo na barra inferior o número de mensagens que estão sendo despejadas na caixa de entrada: oitenta e nove.  Suspiro. Já sei o que me espera: inúmeros agendamentos cancelados, contatos de pessoas que não me interessam e respostas estúpidas para emails sérios e assim vai. As pessoas não têm critério com email profissional alheio, você não acha? Por isso decido: primeiro vou verificar o correio pessoal.
Corrente, corrente, corrente – excluir, excluir, excluir; compre Viagra, Cialis e TVs LCD, sátira divertida no YOUTUBE sobre o casamento real, mais um apelo para assinar uma lista de petição virtual para proteger alguma coisa que eu não tenho a menor intenção de proteger, Pedro e Joca querem ser meus amigos, mas não me lembro quem eles são; alerta da Gol confirmando a compra da passagem para Salvador, Eduardo comentou o status da Maísa;  Cynthia, Bel e Carolina também querem ser minhas amigas no Facebook e... opa! Não acredito!? Brincadeira... No meio de tantos convites de amizade, um deles – inusitado e surpreendente - chama a minha atenção. Volto no tempo tão rápido, que fico até um pouco tonta. Quem diria...
Clico no link que me informa “Mafalda de Quino wants to be your friend”. Que deliciosa surpresa! Ainda bem que deixei uma porta aberta ao Universo...
Começo a fazer algumas contas e, se eu não estiver errada, desde setenta e três não tenho notícias frescas dela. Deve estar com quase cinqüenta anos, pois era aproximadamente um ano mais velha. Será que ela pinta os cabelos?
Logo após ter aceitado o convite, recebo nova mensagem dela “¡Paren el mundo, me quiero bajar! La puta que la pario, Sylvia ¿como estás?”
Eu, que já estava surpresa com o reencontro virtual, fiquei mais estupefata ainda com o vocabulário. Teria ela se tornado uma boca suja? Nãããão, Mafalda, não! Ela era contestadora do tipo dura, mas que não perdia a ternura. Jamais. Pensando bem, quando ela gritava BASTA!... não era nada terno...
“Querida, que saudades? Por onde andas? O que você faz? Casou? Tem filhos?” A quantidade de perguntas que eu tinha era imensa e todas comuns – mas perguntar à Mafalda se ela tinha se casado, era de uma imbecilidade ímpar. Era mais do que improvável, era absurdo que estivesse casada. A resposta que recebi não me surpreendeu. “Estoy en San Pablo, haciendo un curso de Historia Politica en la USP. Me quedo acá por una semana. ¿Podemos encontrarnos?
Isso sim era Mafalda. Trocamos rápidas mensagens e a convidei para me visitar – impossível perder esta oportunidade depois de tanto tempo. Estava me sentindo novamente com dez anos à beira de completar cinqüenta e, cá entre nós, sempre fui apaixonada por ela. Não no sentido bíblico. Se tiver outro sentido, era esse.
Adorava suas respostas rápidas, língua afiada e comentários oportunos. Era meu sonho deixar meus pais sem ação, como acontecia com os pais dela. Lembro, e dou muita risada com estas lembranças, de ocasiões onde ela queria saber de qualquer jeito, qual era o sexo da Terra (ou seria Mundo?) ou quando não conseguiu dormir, de tanto rir, quando leu o significado da palavra democracia. Hoje acho que tenho um pouco dessas características por causa do curto, mas intenso, período de nossa amizade. Isso, sem falar no óbvio: nós duas odiávamos sopa.
Cá entre nós, este problema com a sopa eu não demorei muito a superar. Depois que minha mãe descobriu que sopa com macarrão de letrinha era uma diversão e disfarçava o sabor, nunca mais sofri tomando sopa. Passei a brincar tentando identificar a letra que estava na ponta da minha língua, enquanto ela enfiava uma colherada atrás da outra, goela abaixo. As mais complicadas, pois eram muito fáceis de serem confundidas, eram: L e 7, 5 e S, B e 8, I e 1, 9 e 6. Se você nunca fez isso, ainda há tempo – use o neto ou o filho mais novo como desculpa.
Uma de nossas brincadeiras preferidas era colocar o globo numa cama, como se ele estivesse doente, fazer curativos ao seu redor e torcer para que ele se curasse logo. Eu ainda estou esperando ele se recuperar de alguns maltratos sofridos e tantos outros que ainda acontecem.
Mesmo sem ter o menor perfil para ser miss Argentina ou Universo, Mafalda já se preocupava com a paz mundial. Eu, que pouco entendia o que ela falava, achava tudo aquilo muito engraçado. Liberdade, Humanidade, televisão e Beatles estavam entre seus assuntos favoritos.
Marcamos nosso encontro – e o dia que parecia ser do tipo “mais um”, graças ao Universo e à dupla criadora do Facebook transformou-se em “o dia” e gerou a expectativa do tetê a tetê.
Sábado seguinte, quase uma hora depois do combinado, toca o interfone de casa. O porteiro me avisa que chegou a visita que eu esperava e que ela falava muito enrolado. Autorizo a entrada e espero.
Abro a porta e lá está ela. Pouca coisa acima do peso, calça jeans e camiseta branca – estilo socialista despojado chique. Emocionadas, nos abraçamos. Convido-a para entrar. Será uma tarde deliciosa de lembranças e risadas.
Mas uma coisa me incomoda: após todos esses anos, usando essa roupinha descolada, ela não mudou o corte de cabelo? Deixo esta pergunta de lado, afinal não quero parecer indelicada e temos muito para conversar. Ofereço vinho, ela aceita e a tricotagem começa. A tarde será longa...
Ah... e antes que eu me despeça, quero esclarecer uma coisa para você: sim, naquele dia, quando recebi o convite da Mafalda eu trabalhei e também descobri como salvar a minha camisa branca off white.

3 comentários:

  1. Sylvia, seu texto está fluindo cada vez mais gostoso!!! Quero ler mais e mais!!! Bjs

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  2. Sylvioca, adorei!!!Fiquei até com vontade de conhecer a Mafalda...
    A maior características dos seus textos, é a precisão de detalhes que fluem de cá para lá e de lá para cá que quando percebemos, já lemos o texto inteiro que parecia tão grande no início. Parabéns! Bjkas.

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