quarta-feira, 24 de agosto de 2011

bunda

"Boca foi feita para ser beijada minha filha."


Causei espanto em muita amiga, lá pelos meus quinze anos, quando dizia esta frase.
Nessa época, ao redor de 1978, cabelos brancos arroxeados eram comuns. Pelo menos na minha casa. Ensinar a fazer tricô e crochê, também. Fiz muito casaquinho e sapatinho para instituições de caridade, observando as laçadas e cruzadas de agulhas que as mãos de minha vó orquestravam.

Dona Lygia ou Alfacinha, foi quem me ensinou a usar linhas e agulhas e a não ter medo de beijar.

Professora de piano, tinha os dedos longos e a pela mais macia da paróquia. Vaidosa, estava sempre arrumada, levemente maquiada e sempre - sempre! - perfumada. Detestava budum.


Desde essa época, ela tinha cara, jeito e maneiras de avó. Diferente de hoje em dia, quando você não consegue identificar quem é a neta, a filha ou a avó. Quem a visse na rua, acompanhada de seus filhos e netos, sabia exatamente quem ela era.

Sua coroa era sua cabeleira arroxeada.

Linda, imponente e altiva, a ponto de, não raro, em nossos almoços dominicais, alguém no restaurante se aproximar por trás dela - ao mesmo tempo que com as mãos em concha tocava sua cabeça - dizendo: de quem são estes cabelos mais lindos!?


Situação parecida a esta, vivenciei anos depois, quando nasceu minha primeira filha. Confesso, era um saco a cada ida ao shopping center, as pessoas parando e dizendo "que coisinha mais linda..." e eu fazendo cara de poucos amigos. Hoje, penso que só minha vó para ter paciência semelhante a de Jó para sorrir, virar-se e dar atenção a estas pessoas. Alfacinha, era uma santa!


Meu primeiro diário foi presente dela, quando completei quinze anos. Capa plástica verde, com centro de fundo branco onde havia uma rosa vermelha. Na primeira página, em sua belíssima caligrafia e provavelmente escrita com BIC azul, estavam os versos:

Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Depois de um casamento desfeito e várias mudanças de casa, esta frase é tudo o que restou deste diário...
Ela adorava a língua portuguesa. Adorava mesmo! Vivia nos corrigindo ao menor deslize. Tinha orgulho da mãe professora e do irmão, José Castellões, professor de latim. Pronunciava algumas palavras, procurando a expressão da sonoridade perfeita, da construção gramatical exata. Ficava inconformada com o que ouvia na rua. Estão acabando com o português minha neta... uma tristeza... uma tristeza, dizia quando retornava das compras.


Caminhava muito, ia para todos os lados do bairro de Moema até o dia que se deparou com a crueldade da cidade - caiu no golpe da "mulher passando mal na rua" quando teve seu apartamento assaltado e alguns meses mais tarde, as calçadas da cidade lhe deram uma rasteira e passou a usar bengala. Nasceu o receio de ir e vir e começou a ficar mais em casa.


Foi aqui que começou sua despedida. Despedida longa esta, que terminou no Carnaval de 2009, aos noventa e oito anos no dia do aniversário de seu já falecido filho, Fernando. Mas, não antes de passar a seus bisnetos, algumas jóias de sua sabedoria, quando lhes dizia:

- Bizinhos... nossa língua é linda.. sonora... rica. As palavras bem ditas, enriquecem quem as ouve... Algumas palavras, mais do que outras, e para mim, meus queridos, não há palavra mais gostosa de se falar do que bunda. Vejam como ela enche a boca, faz saltar as bochechas...buuunnnda.


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